quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Poemanifesto - Se poesia não vende


Se poesia não vende,
compremos então um naco do coração do poeta,
enegrecido pela fumaça do cigarro e embrulhado em papel de pão

Compremos um ou dois de seus maiores cílios,
pontiagudos e piscantes – para servirem de enfeites de abajur -,
um saco de suas unhas roídas
e alguns chumaços de seus cabelos revoltos

Se poesia não vende, adquiramos três quartos
de músculo dos braços dos poetas, fatigados,
do cotovelo ao punho,
da escrita, fenecente e morta,
corcunda sobre a máquina

Em prestações, financiemos seus rins
ou um ou outro fígado de bons poetas
menos alcoólicos

Com um ou dois anos de consórcio,
você poderá adquirir, novinho, um poeta,
desses recitantes, das novas tendências,
mais contemplativos que românticos

Aderindo a algum novo plano de saúde,
poderá adquirir as amostras de sangue,
chapas de pulmão e até mesmo um
eletrocardiograma recente
dos batimentos cardíacos do escriba

Raridade seria um encefalograma que demonstrasse,
em gráficos, as tendências modernistas de seus
versos livres
e como Rimbaud e Baudelaire fizeram sua cabeça

Se poesia não vende, adquira ao menos um
pôster nu do poeta
e o afixe na porta de seu banheiro – muitos deles,
os poetas, são bem gostosos!

Faça uma gincana de poetas ou mesmo os apedreje,
amarre-os em praça pública com coleiras de couro
ou os enjaule em grades de roliços ferros fundidos

Os que não forem adotados na exposição,
enviem para amigos e parentes distantes
-“não queremos cuidar de poetas nesta casa”-
disse a mulher, tia que mora em Maceió,
ao receber, de surpresa, o recém-chegado poeta
devidamente remetido a ela pela família do Sudeste

Se poesia não vende, contrate um poeta
para sua festa de debutante,
depois de alguns goles a emoção toma conta
e os convidados gostarão da leitura completa
dos picantes poemas de Hilda Hilst

Se poesia não vende,
então não negue nunca um trago, um tapa,
nem tempestade ou maremoto,
um riso ou um resto, um cuidado
ao atravessar a rua ou um afago
na nuca
do poeta

E se lhes der uma pouca,
qualquer que seja, atenção
eles, de olhos vibrantes
fantasmagoricamente voltarão,
com ideias na cabeça,
quase como delirantes
cineastas do Cinema Novo
e lhe ofertarão, segurando com todo o cuidado
- como se fossem afiadas navalhas cortantes ou
mesmo o pequeno corpo morto de um recém nascido -
pilhas de seus poemas, rabiscados,
nas mãos