sábado, 11 de junho de 2016

DEPENDURADO DE PONTA CABEÇA SOBRE A PONTE DO PAU FURADO






Há um pedaço de pão velho em meu bolso 
que evito comer porque não tenho ainda fome suficiente
Este pão me foi dado por um velho mendigo na Praça 13 de Maio, 
ele o guardava numa sacola branca do Carrefour
Há um último cigarro amassado em meu maço 
que evito fumar porque não tenho ainda vontade suficiente
Este cigarro me foi dado por um amigo bêbado na porta do bar da 34, 
ele o levava escondido atrás da orelha esquerda
Há uma cama, com lençóis sujos me esperando do outro lado da cidade, 
em que evito deitar porque ainda não tenho sono suficiente
Esta cama me foi dada por uma senhora no bairro Tubalina, 
ela a jogaria no terreno baldio em frente à sua casa
Há um cão vira-lata em meu encalço 
que evito olhar porque não quero dividir meu pão que para nós dois ainda não é suficiente
Este cão fareja o odor da minha vergonha, das calúnias e das mentiras que carrego comigo, 
alojadas fundo, entre os ossos de minha caixa torácica
Há um cadáver com formigas caminhando sobre sua amarelada pele, podre e macilenta, 
o qual evito lembrar-me porque não tenho coragem suficiente
Este cadáver sou eu, amarrado de ponta cabeça, dependurado na ponte do Pau Furado, 
sobre os trilhos de ferro, rezando para que acreditem em minha história
Há um bilhete de suicídio em meu bolso, que não foi escrito por mim

domingo, 28 de junho de 2015

Arrasta sua sandália de odalisca triste pelo asfalto


Sua pele de animal selvagem
Coberta de fuligem, sujeira e sal
Suas escamas sobre as costelas salientes
Denunciando a fome que te ultrapassa

Ancorado em minha mesa, observo
A nervura de teus passos, buscando mais uma dose
O traficante que não chega
Te oprime como o tombo de uma guilhotina

Sob o astro frio da tarde que finda
Sua agonia, tão imensa, quase nubla o sol poente
Se eu quisesse poderia tocar sua angústia
E fazer dela pequenos cubos de gelo d’alguma bebida

Arrasta sua sandália de odalisca triste pelo asfalto
Suas unhas mal feitas, como garras de um bicho enjaulado
Eu sei como dói, são os ossos rangendo dentro da carne
São os olhos que não se interessam por mais nada

Dentro de sua calcinha, pulsa, teu sexo aberto em ferida
Corrimento fétido e viscoso, pelas pernas escorre e corrói a pele
Já foi bela, foi como flor, dama singela e longilínea
Agora apodrece viva, chamada antes Simone

Agora a chamam pretinha da Vila Silva
Louca dos cabelos arrancados, magrela desgraçada
Favelada sem pai nem mãe, ladra de beira de esquina
Mas eu ainda te chamarei Simone, pela vida que te negaram

E pela dor que não posso te arrancar
Pela incapacidade de te salvar
Pela miséria que carrego comigo
_ Tome um cigarro, Simone, se cuide.

domingo, 7 de junho de 2015

Um Cisco nos olhos



Apertou no peito o bilhete amassado. Arremessou a bituca de cigarro, colocou as mãos no bolso e aninhou com os ombros a mochila nas costas. Olhou os carros que passavam rápidos na Avenida, nem sinal do ônibus. A passagem custa R$3,10. Amanhã, vai tentar mais empresas, vai enfrentar mais entrevistas, vai ser testado novamente. Vai buscar um emprego. Como um boi no matadouro, como um porco sendo castrado.

Eram dez horas da noite e tem fome. Em sua casa há apenas alguns pães, já duros, e um pacote de macarrão. Mas não tem molho e pensa em fazer o macarrão com um tablete de caldo de carne. Sabor churrasco.

Estava contrariado pela derrota que sofrera no bar do Ramiro. Não havia resistido à tentação e passou no bar pra beber uma pinga, bebeu duas e desafiou o Ramiro pra uma melhor de três. Perdeu as duas primeiras partidas e jogaram a terceira só de sarro. Estúpido, pensara que pudesse vencer Ramiro e sair com mais dez reais da banca e ainda beber outra pinga. Foi tolo, como se aposta dinheiro com o dono do bar, o dono da mesa? Imbecil.
Perdeu dez reais.
Tanto dinheiro pra quem tem fome.

Dentro do ônibus, os passageiros calados, quietos. O ônibus está vazio. O terminal de desembargue ao contrario já está lotado, pessoas andando rápido, crianças de colo, senhores idosos e jovens voltando da escola. Todos esperando o ônibus que os levarão aos seus bairros, às suas casas. Um cheiro de pipoca, de sanduíche, de carne fritando se mistura no ar.  O gosto da gordura lhe vem à boca. Lembra-se da sensação de ter seus dentes rasgando um naco de carne. Há quanto tempo não come um pedaço de carne? O estômago começa a doer. É como se o socassem por dentro, forte, como se um boxeador o golpeasse o baixo ventre e o baço. A cachaça pegou em cheio suas entranhas e ácidos intestinais e os revirou como fazem com o lixo os moradores de rua, sobrando somente um chorume que, como um cachorro sobre a carniça, lhe devorava por dentro.
As tevês do terminal estavam sintonizadas em um telejornal e a todo momento surgiam, entre as falas dos repórteres, rostos de homens, com seus nomes e números com muitos zeros logo abaixo de suas caras. Seus rostos surgiam na tela, imensos. Eram os políticos da tal lista de corrupção. Uns caras começaram a falar sobre aquela merda toda ao seu lado e quando percebeu que poderiam puxar assunto, colocou os fones no ouvido. Mas não ligou a música no celular. Continuou a ouvir os homens agora protegido pela barreira dos headfones e seguro de que não lhe dirigiriam a palavra.

Listas de nomes. Isso o lembrou do dia fatídico em que seu nome surgiu na lista de demissões do canteiro de obras, numa bela manhã de sol. Inesperadamente. Chegou ao canteiro e um amigo o olhou de forma estranha, outros dois vieram lhe cumprimentar sérios. “Que foi mermão?“. Seu nome estava no fim da primeira folha, das duas pregadas na porta do almoxarifado. Francisco Rocha, e em seguida seu RG. O encarregado das finanças disse que a obra estava em conclusão e que decidiram cortar custos. Ganharia todos os direitos e o aviso prévio também seria pago.

Esse foi um bom período, bons meses. Ralava muito é verdade, mas tinha sua grana, tinha amigos, tinha uns chapas. E a grana era até boa. Dava pra sair no fim de semana, pagar umas cervejas para as meninas. Beber uns destilados dos bons. E a amizade entre os caras era firmeza. Às vezes, rolava uns empréstimos, quem ainda tinha algum dinheiro no fim do mês, segurava as brejas e as sinucas dos sem grana. No dia do pagamento era como o canto do galo, logo pela manhã, certeiro. Quem devia já passava o dinheiro vivo na mão do credor. Agradecia o empréstimo e se dispunha a ajudar caso o outro precisasse. Era como um acordo no fio do bigode, na palavra. Havia uma justeza entre aqueles homens. E quem não cumpria recebia a represália dos demais. “dá mancada não mermão“.

Ele gostava desses códigos, dessa confiança e camaradagem implícita. Era o segundo emprego dele na cidade, e começava a se interessar pela construção, pelo avanço colossal de uma obra, pela ideia de que suas mãos ergueriam tanto aço e concreto rumo ao céu infinito, modificando violentamente a paisagem. Observava também que muito dinheiro circulava ali, que os donos eram muito ricos, que andavam em carrões novos, que as contas e os gastos eram todos na casa dos milhões e isso o agradava, estar próximo de dinheiro. Começou a pensar que podia se tornar um encarregado ou um motorista de guindaste talvez, porque os motoristas não carregavam peso e ficavam boa parte do tempo, muitas horas do dia escorados em alguma sombra aguardando as ordens para subirem nas cabines das altíssimas máquinas e trabalharem sentados, enquanto ele, como servente só parava pra tirar o suor da testa. E os motoristas de guindaste por mais que trabalhassem, mantinham suas roupas muito mais limpas. Isso também o interessava.

Mas nada disso aconteceu, foi demitido, recebeu todo o seu acerto, alguns mil reais e os consumiu rapidamente em alguns meses, procurando outro emprego. Nos últimos tempos havia feito um bico num restaurante em troca do almoço, lavando as louças e todo o piso do salão, depois das três da tarde, quando fechavam a cozinha. Que se lembre, foi lá que mordeu pela última vez algo que se possa chamar de carne.

Seus dentes doíam, era a fome. Tinha que sair do terminal de embargue logo, o cheiro dos sabores da comida, e as lembranças ruins, o corroíam o estômago. Ter fome dói.


Merda de ônibus que não chega.

_ continua

domingo, 29 de março de 2015

À beira da queda


Um bom poema
te pega pela garganta já na primeira linha
subitamente, nas linhas seguintes, como um
boxeador costa-riquenho, te acerta mais dois golpes
a partir disso você se interessa pelo combate
limpa o canto da boca e se torna mais ligeiro e astuto

Seus olhos se fixam nas palavras, seguindo as linhas
e você continua a luta, as pupilas se dilatam
há eletricidade no ar e um zumbido surdo começa a ecoar
no oco de seu crânio, como se abelhas, trêmulas e inquietas
cantassem um novo hino, numa invisível colmeia
dependurada atrás de sua orelha esquerda

As palavras, como um valentão injusto, começam
a golpear, lhe arranham a goela como uma bebida forte e amarga
te acuando num desfiladeiro íngreme, sem saída, à beira da queda
te encurralando enquanto as imagens passam em frente aos seus olhos
como uma manada de animais selvagens fugindo do fim do mundo,
e é como uma febre intensa e você engole seco; são vertigens

Um bom poema
nunca te abandonará,
ele te perseguirá,
te impedirá de saltar a ponte,
de investir na Bolsa de Valores,
de se envolver com Deus

Você poderá morrer abraçado
a um bom poema
ele te guiará ao encontro de Caronte e te impedirá de,
durante a travessia, atirar seu corpo nas águas do rio
ou enfiar sua cabeça dentro do forno e respirar o gás
depois de escrever seu último verso na fria palma da mão

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um quarto em chamas




Um poema arranha o vidro da janela com as unhas, anunciando sua presença numa angustiante e lenta ranhura, como às vezes faz a chuva num começo de tempestade

Depois bate rispidamente na vidraça, golpeando, esmurrando

Impondo-me a fazê-lo existir

É sempre assim, inesperado e insistente e não tenho certeza se já me acostumei a isso

Forçando sua entrada se arremessa contra a superfície transparente e cortante, sem medo de que seu corpo seja lacerado se, com o impacto, tudo se estilhaçar

Ele deseja existir e me escolheu para arranca-lo de sua carne ao devora-lo vivo

Enxergo seus lábios, furtivamente sussurram algo

Tem dentes sujos e olheiras escuras, seus olhos são minúsculos

Então levanto da cama e apanho alguns livros, arranco suas folhas e preparo no meio do quarto uma fogueira para receber meu novo amigo incendiário

As chamas crescem, o vidro se estraçalha, o ar se torna pesado e irrespirável e a presença monumental do poema toma conta de todo o ambiente

Sinto seu impacto no peito, a boca instantaneamente seca e os olhos coçam

Fagulhas rebrilham pelo ar tremeluzindo à minha volta, estou em chamas e minhas mãos são torrões de carvão, negros e fumegantes

Há tanto calor dentro do quarto que insetos e moscas caem mortos, ardendo ao meu redor, as lâmpadas explodem e a madeira das estantes range endemoniada

Em delírio, como amantes suicidas, num último reencontro mortal, nos abraçamos

Calidamente nos beijamos, eu e meu poema, como fracassados misericordiosos que somos, não nos escondendo em frestas sociais e purgando do singelo desconhecimento de nossa conjunta obra

Mas isso pouco importa, pois o fogo ainda continua queimando no meio do quarto e dentro da minha cabeça as labaredas lambem meus lóbulos frontais

O poema então senta em uma cadeira e dá o primeiro gole numa garrafa que subitamente surge em suas mãos

O tempo é curto
Não há nada o que dizer

Pego uma caneta, pouso no papel, deixo o sangue escorrer, o calor toma conta dos meus ossos e então começo a escrever enquanto as chamas se alastram e tudo ao nosso redor começa a incendiar



#

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Um poema sem nome




Se meu filho se chamar Benjamin
faremos juntos um som, livre e experimental,
bem jazz, talvez com o Jack, colhendo notas,
como beija-flores sugando uns girassóis e alguns jasmins

Se minha filha se chamar Teresa
serei seu cúmplice, ligeiro, em assaltos a reinos imaginários,
ela sendo sempre muito mais companheira de fortaleza
- com a cara suja de terra, escavando túneis para nossa escapada –
do que donzela ou princesa

Se seu nome for Pablo
caminharemos pelas ruas de cidades antigas,
pisando nossos calcanhares calçamentos de pedras ancestrais,
visitando calabouços, catedrais e gargalhando em descalabro

Se seu nome for Rita
levará onde for um sorriso no rosto, e vez ou outra, ainda pequena,
andará pela casa tendo nos cabelos flores de margarida,
dançando dentro de um curto vestidinho rodado de chita

Se se chamar Benício
prevejo muitos tombos de bicicleta, joelhos ralados,
ansioso para abandonar as rodinhas, me ensinará sobre
a infante insensatez das crianças
e todos os dias serão um eterno recomeço e início

Se se chamar Manuela
gostará dos astros e se interessará pelas estrelas,
será questionadora e arisca, como as personagens de Jorge Amado,
e seus cabelos lembrarão de fato, em dado momento, os cabelos de Gabriela

Se teu nome for João Francisco
gostará de futebol, iremos a partidas em estádios
e o time que você escolher torcer será então meu novo time também
e chorarei ao seu lado nas conquistas,
dizendo ser em meu olho somente um repentino cisco

Se teu nome for Maitê
dividirei apenas em três as estações do ano,
criando uma nova e quarta primavera outonal,
onde as folhas das árvores e os frutos vibrantes florescerão
simplesmente por conta dos sorrisos que brotam em você

Se o chamarmos Joaquim
poderá ser um músico, violonista,
desses de ganhar corações com um sorriso e escrever
canções de amor sobre a disputa entre Pierrôs e Arlequins

Se a chamarmos Júlia
ouviremos discos de vinil, leremos poemas de John Lennon sobre sua xará
e aos nossos pés bolinaremos com dedinhos e dedões
nossa gata preta, que chamaremos Tertúlia

Se você se chamar Ernesto
discutiremos política e economia,
discorreremos sobre as guerras e as revoluções,
lhe explicarei sobre o Wikileaks e conceberemos, nós,
nosso particular e familiar “contra-o-mundo” manifesto

Se você se chamar Janaína
gostará do mar, do vento solar salgado na face, e quando já adulta,
morando no interior, será pelos amigos conhecida sempre;
sereia, seja das águas de cachoeira ou de fluorescente piscina

Se meu filho se chamar Dante
organizaremos nossa biblioteca pelas cores das capas dos livros,
em festiva ordem degrade, seu exemplar d’Os meninos da Rua Paulo
ao lado das minhas epígrafes e micro contos de Jorge Abrantes
e da Literatura Latina, fantástica e delirante

Se minha filha se chamar Nara
será pequena leoa delicada, de cabeleira volumosa,
sempre com as melhores perguntas na ponta da língua,
como as personagens de Drummond que um dia eu amara

Meu poema mais bonito,
ainda sem nome,
se avolumando no mundo,
silencioso e urgente
Nesse momento
eu olho e ainda não entendo,
à minha volta, venta, mas
o tempo, este parou de repente

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Saudosa Maloca ou o fim dos “campinhos de pelada” artísticos



Robisson Sete

Já há alguns anos os cronistas esportivos apontam que a crescente especulação imobiliária nas cidades brasileiras vem produzindo um efeito nocivo na formação de novos atletas e jogadores de futebol, devido ao desaparecimento dos diversos campinhos de várzea espalhados pelos terrenos baldios das, principalmente, periferias do país.

O fim do toque sutil na bola, do drible matemático e da ginga de quem joga descalço arrancando a tampa do dedão ao tentar uma finta ou um elástico, é imposto, invisivelmente, a todo o tempo em contraponto de um treinamento mecânico e moderno. Essa nova lógica vem interferindo diretamente no rendimento e no próprio talento concentrado da juventude esportista. Sem os campos de várzea mais garotos buscam as escolhinhas “profissionais” e um certo tipo de homogeneização no tratamento dos fundamentos e da técnica é dado. Antes de sentirem as intempéries e dificuldades do futebol amador, os garotos já são incensados a mini-profissionais e, enfim, um bundamolismo futebolístico se implanta na identidade desses atletas, tão jovens e já tão desprovidos, muitas vezes, tão cedo, de chama e de alma.

Enfim, futebol no ‘país do futebol’, é uma religião composta de amores, ódios, futricas e disse-me-disses, fogo-amigo e muita gaitada. E violência desmedida também, nas últimas décadas principalmente, e dinheiro, muito dinheiro.

Falo sobre o futebol para poder falar de arte. Pois o que quero tratar nesse texto, na verdade não é sobre o esporte bretão, mas sim sobre os últimos suspiros da mítica República Maloca, situada na antiga Rua Nove no bairro Santa Mônica, bem em frente ao portão da UFU na Avenida Segismundo Pereira.

Essa república que tem, mas há controvérsias, por volta de quinze a vinte anos de existência e que já abrigou tantas e diversas almas; estudantes, professores, artistas, músicos, poetas, malucos de toda estirpe, bandas, coletivos artísticos e políticos e nos últimos tempos, também fanáticos jogadores de videogame, chega ao fim. Será demolida, juntamente com a antiga casa ao lado, para que no espaço dos dois terrenos seja erguido um ‘simpático’ prédio de dois ou três andares, onde os vizinhos não se cumprimentam pela manhã.

A especulação imobiliária corrói a cidade e como ocorre com os campos de ‘pelada’ pelo país, realoca os espaços conforme a lógica do capital e do interesse financeiro. Não é a primeira e nem será a última república ou casa bonita e espaçosa, com árvores, terra e grama, que será destruída nos arredores da Universidade Federal de Uberlândia. Mas é que com a Maloca não devia acontecer isso, não devia acabar, morrer e ficar somente na memória. 

É um sentimento que ocorre quando pensamos sobre nossas mães, - “Mãe nunca devia morrer”- devia ser algo permanente, e até quando estivéssemos velhinhos nossas mães ainda estariam com trinta e poucos anos nos amparando para a vida cotidiana não nos esvair a seiva primal, que compõe o homem e a mulher.

Mas infelizmente não é assim, tanto com nossas mães, como com outros amores. As coisas acabam, findam, é um processo químico dessa nossa vida no planeta Terra. Quem sabe em outros mundos, algo possa ser eterno. Aqui, não.

A Maloca, que ao que parece, ganhou esse nome de seus últimos moradores, nos quatro ou cinco anos recentes, é como um campinho de várzea artístico e fervilhante, com sua sala de ensaios, com seu espaço amplo, suas árvores e sombras, onde, após as aulas, conferências infindáveis sobre conteúdos acadêmicos foram “digeridos” e debatidos, ao som de Jethro Tull ou de Nelson Cavaquinho. Onde amores se formaram, e também terminaram, filhos foram gerados, viagens à Congressos e manifestações foram combinadas, passeios à cachoeiras foram arquitetados, discussões políticas foram travadas, Coletivos montados, teses de Mestrados e Doutorado suadas dentro das noites, além do tradicional sexo, drogas & rocknroll!!!

Tantas festas que já ocorreram; de aniversário, de fim de ano, de começo de semestre, pra juntar uma grana pro aluguel, um chá de bebê pros amigos que esperam filhx que está por vir; de Carnaval, a Festa da Transa, enfim a república sempre foi um palco aberto pra arte, pra música, para os artistas.

Quem nunca beijou na boca ou passou um certo tipo de vexame num fim de festa?

Não é um privilégio da Maloca ser esse espaço tão prolífico em termos de criação, arte, política e música. Há sim, várias outras repúblicas que percorrem essa cartilha, mas é que a Maloca é especial, vai acabar e vai fazer falta.

Quem sabe, os novos moradores, ouvirão misteriosamente, no meio da noite, como que assentados sobre um antigo cemitério indígena assombrado, risos e gargalhadas, retumbando nos cômodos.

Serão nossas vozes ecoando no espaço infinito buscando sempre a expressão, numa festa interminável. E nenhuma taxa de condomínio ou síndico competente, poderá dar jeito nisso!




Festa SAUDOSA MALOCA
República Maloca # Rua João Pereira da Silva (antiga 9) nº94 – Santa Mônica (em frete a portaria da UFU na Segismundo)                                                             
Sábado 08 de novembro 16h - Entrada 5$
                                                                                                                      
Convidados:
Toninho Sete Cordas, Gustavo do Cavaco, Fausto Rib, Kainã Bragiola   
Bandas:
Dikika; Guimes, Elaine, Marco Nagoa                                                                             
Uberrante; Gustavo Brito, Manoel Moura, Moisés Oliveira
Quinteto Madruga; Ana Luiza, Talita Vasconcelos, Ricardo Abdala                           
Curva de Rio; Robisson Sete, Daniel Teodoro, Dino, Rogerio Lúcio
Postielka; Pedrinho Reis, Jordok
MetrôCapuêra; Regis Queiroz, Serjão
& Jackinho Will !!!!

domingo, 26 de outubro de 2014

País

Antes de qualquer cor,
azul, verde ou amarelo, 
existe no homem um 
vermelho
cru

Antes de qualquer 

bandeira, flâmula
ou estandarte
existe no homem um
corpo
nu

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Poemanifesto - Se poesia não vende


Se poesia não vende,
compremos então um naco do coração do poeta,
enegrecido pela fumaça do cigarro e embrulhado em papel de pão

Compremos um ou dois de seus maiores cílios,
pontiagudos e piscantes – para servirem de enfeites de abajur -,
um saco de suas unhas roídas
e alguns chumaços de seus cabelos revoltos

Se poesia não vende, adquiramos três quartos
de músculo dos braços dos poetas, fatigados,
do cotovelo ao punho,
da escrita, fenecente e morta,
corcunda sobre a máquina

Em prestações, financiemos seus rins
ou um ou outro fígado de bons poetas
menos alcoólicos

Com um ou dois anos de consórcio,
você poderá adquirir, novinho, um poeta,
desses recitantes, das novas tendências,
mais contemplativos que românticos

Aderindo a algum novo plano de saúde,
poderá adquirir as amostras de sangue,
chapas de pulmão e até mesmo um
eletrocardiograma recente
dos batimentos cardíacos do escriba

Raridade seria um encefalograma que demonstrasse,
em gráficos, as tendências modernistas de seus
versos livres
e como Rimbaud e Baudelaire fizeram sua cabeça

Se poesia não vende, adquira ao menos um
pôster nu do poeta
e o afixe na porta de seu banheiro – muitos deles,
os poetas, são bem gostosos!

Faça uma gincana de poetas ou mesmo os apedreje,
amarre-os em praça pública com coleiras de couro
ou os enjaule em grades de roliços ferros fundidos

Os que não forem adotados na exposição,
enviem para amigos e parentes distantes
-“não queremos cuidar de poetas nesta casa”-
disse a mulher, tia que mora em Maceió,
ao receber, de surpresa, o recém-chegado poeta
devidamente remetido a ela pela família do Sudeste

Se poesia não vende, contrate um poeta
para sua festa de debutante,
depois de alguns goles a emoção toma conta
e os convidados gostarão da leitura completa
dos picantes poemas de Hilda Hilst

Se poesia não vende,
então não negue nunca um trago, um tapa,
nem tempestade ou maremoto,
um riso ou um resto, um cuidado
ao atravessar a rua ou um afago
na nuca
do poeta

E se lhes der uma pouca,
qualquer que seja, atenção
eles, de olhos vibrantes
fantasmagoricamente voltarão,
com ideias na cabeça,
quase como delirantes
cineastas do Cinema Novo
e lhe ofertarão, segurando com todo o cuidado
- como se fossem afiadas navalhas cortantes ou
mesmo o pequeno corpo morto de um recém nascido -
pilhas de seus poemas, rabiscados,
nas mãos

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Um hotel na Monsenhor Eduardo



15h47
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Bebeu um gole no gargalo da garrafa, a língua já áspera pela mistura de vinho, cerveja e cigarro. Sentindo o álcool fazer efeito e elevar suas vistas turvas, se acomodou na poltrona.

Na calçada em que se encontrava jogado algumas horas antes, sua cabeça, ao acordar foi a primeira coisa que sentiu. A pele da cabeça, o couro cabeludo sendo arrastado no cimento. Convulsionava. Tinha isso às vezes, monstro sinistro escondido sob seus olhos. Era sempre de repente, súbito.

Às vezes quando tinha soluços, temia que deles, os soluços, como que em contrariada disputa, brotasse a temida crise de epilepsia, impondo sua histeria muscular. Não há quem se sinta à vontade dentro de uma crise de epilepsia. Um caldeirão fumegante, panela de pressão borbulhante. A sensação eminente de que uma multidão de demônios lhe arrancará a língua, ao mesmo tempo em que desejam e tentam sair por todos os seus poros.

Quando tudo acabava sobrava um gosto de sangue em sua boca, nem sempre, mas muitas das vezes que acometia uma visita a esse inferno.

- Dá um gole - pediu ela.

Ele se voltou, corpo arqueado em um quase S. Percebia-se como um boxeador morto em combate e ressuscitado por obrigação contratual, forçado a terminar sua luta. Só que seu Dom King* era um Deus escondido atrás de seu globo ocular. Encoberto pela retina negra de seus olhos.

Assim, ele se virou contorcendo todos os músculos doloridos das costas. Suas vertebras fora do lugar rangeram num imperceptível som, minúsculo aos nossos ouvidos.

- Toma. Vou abrir outra.
- Me morde.

Ele caminhou sorrindo, olhando os prédios emoldurados pela janela gradeada e aberta de seu quarto.

Quando das primeiras crises, ainda adolescente, acordava dos delírios com um tesão desgraçado. Logo já ficava de pau duro, e tinha realmente de ficar sentado, quieto, como todos sugeriam, não para se recobrar do choque, mas justamente, pra tampar o membro rijo nas calças.

Beber e transar depois das crises sempre foram seus principais objetivos. Não havia outras formas melhores de libertar a tensão dos choques e da violência das convulsões.

Abriram as cervejas e jogaram as tampas num latão de metal no canto do quarto.

- Vamos depois destas?
- Sim.

Ele queria perguntar a ela como havia acontecido o surto, mas era decepcionante ouvir algumas pessoas dizendo. Não tinha riqueza de detalhes nem tensão narrativa.
Muitas vezes era apenas - "Você caiu de repente e me assustou".

Como que lendo seus pensamentos, ela inexplicavelmente diz.

- Achei que você ia morrer hoje. Estávamos caminhando, você estava fumando e falando sobre as bolsas de valores quebradas na Europa e da última entrevista do Irmão Isacke, daí seus olhos se fecharam rapidamente, achei que você fosse rir, mas contorceu a cara – e ela imita lindamente a cara que ele tinha feito – e bateu com a cabeça na parede. Se a gente estivesse numa ponte ou em um barranco, você tinha “ido” – e ela ri da possibilidade – Você deu um pulo para o lado de lá e despencou, se debatendo meio que contra a parede. Eu já tinha visto crises mas a tua é muito forte.
- Sou um tipo de hulk imprevisível do cotidiano.
- Você é doido.
- Vou comprar um cigarro. Quer algo?
- Mais cerveja.

Ele riu, vestiu as calças, os chinelos e uma camisa.

- Se apronte que já tá dando a hora.

Frances era ótima companhia. Inteligente, rápida e confiante. Em uma única troca de olhares e num arfar profundo do ar ao entrar em um ambiente, era capaz de compreender tudo o estava ocorrendo em uma situação e à sua volta. Sexto sentido era seu sobrenome. Seus punhos e braços cheios de cicatrizes e marcas feitas com gilete e cortes produzidos por tesouras cegas e facas de cozinha eram signos de sua ruptura com a autocomplacência. Frances há muito tempo era uma solitária, apesar de ser uma mulher muito bonita, o que em certo sentido só reforçava sua melancolia.

Ele desceu pelas escadas os dois andares do Hotel Paris na Avenida Monsenhor Eduardo. Atravessou a rua e entrou em um bar de madeira, misto de botequim e pequeno prostíbulo popular, que inclusive funcionava às tardes, atendendo aos jovens trabalhadores da região, que se deitavam, com nenhuma desenvoltura e alguma vergonha, com as barrigudas moças vestidas de calças legging.

- Um maço de cigarros, por favor. Um Belmont vermelho.

Duas crianças se alimentavam de bolachas e refrigerantes em uma mesa próxima. Filhas das jovens meretrizes, com certeza. Tinham aspecto saudável e o cabelos revoltos característicos de meninas de 8 anos. Cabeleiras indomáveis e brincalhonas que lhes caiam em cachos nos rostos e angelicalmente, com as mãozinhas atabalhoadas, eram jogados para o lado ou prendidos no alto das cabeças.

Atravessou a rua novamente, com um cigarro acesso nos lábios pensando que em sua infância e depois adolescência, havia comido muitos pastéis na feira livre, pelas manhãs, naquela extensa avenida. Muitas vezes vindo de alguma festa de sábado à noite.

Quando saiu de Uberlândia aos vinte e poucos anos pra viver na fronteira do Paraguai, não tinha ainda o entendimento do mundo. Da vida. Não havia amado ainda, não havia passado fome, sentido dor ou se fodido e muito menos pensava que iria um dia matar alguém. Tantos anos depois, retorna justamente para realizar um trabalho na cidade em que nasceu.

Disse à atendente do Hotel que estava saindo e subiu as escadas.

- Frances, vamos?

Ela já estava pronta, vestida de calça jeans justa e botas, colocou uns óculos escuros e foi ao banheiro. Depois, jogou a bolsa no ombro e o esperou vestir uma nova camisa limpa e seus sapatos. Desceram juntos e pediram à atendente que chamasse um táxi. Ele carregava uma mochila de viagem nas costas.

- Vamos para o bairro Roosevelt, amigo. – o taxista partiu rumo ao destino.

O Roosevelt é um bairro nascido nos anos 40 ou 50 e rezava uma lenda sobre ele. Que havia sido projetado por um arquiteto comunista para que servisse de “aparelho”, de esconderijo a perseguidos pela ditadura Vargas. Suas ruas eram totalmente confusas e em vários pontos formavam labirintos, pontos cegos e becos. Caracóis de asfalto e postes de luz. Um lugar facílimo para se perder. Mas, não hoje.

Desceram do táxi a alguns quarteirões do destino final e caminharam adiante. Tocaram o interfone de uma casa com cercas elétricas sobre um muro verde alto.

- Oi? – perguntou a voz de um homem.
- Olá. Sou eu. Omar. – respondeu.

O portão foi aberto.

A área externa da casa era arejada e bonita, decorada com muitas plantas dependuras em xaxins. Um grande cachorro pastor alemão os observava de um canto, com uma cara lerda de quem sabia ser ele, o grande dono de todo aquele pequeno reino arborizado.

- Olá, Omar. – um homem de cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos e bigode preto veio lhes receber - Vamos entrar.

O interior da casa era muito elegante, com grandes tapetes cobrindo o chão, vários quadros e uma adega com garrafas de vinho e cachaça.

- Bem, vamos ao que interessa. O alvo estará na Cidade Jardim, em uma reunião com empresários por volta das seis horas. O endereço você já decorou?
- Claro.
- Não precisamos de alarde nem de grande confusão.
- Obviamente você não precisa dizer isso.

Nelson o olhou nos olhos nesse momento, fixamente. Era um homem acostumado a dizer o que quisesse e pensava. Não estava familiarizado com ninguém lhe dizendo que não precisava falar o que queria.

- Certo. Bem, então tome aqui. – lhe empurrou um envelope que estava sobre a mesa. Olhou novamente para o homem à sua frente. Em pé, Omar lhe pareceu mais velho, sob a sombra do pórtico. Nelson pensou; “um assassino deveria ser mais humilde. Para alguém que não dá valor à vida, deveria entender que a sua própria também não vale nada, e que uma palavra mal dita poderia lhe custar um tiro na nuca, nesse exato momento”. - Ok, Omar. Boa sorte.
- Obrigado.

Saíram sem se cumprimentar ou despedir. Com o dinheiro no bolso e a adrenalina aumentando, sua mente agora passava a raciocinar exclusivamente sobre os detalhes que teriam de cumprir para que o trabalho fosse feito.

- Frances, vamos tomar um café?
- Claro.

Pediram dois cafés em uma lanchonete na Avenida Cesário Crosara.

- Faremos como sugeriu?
- Sim.
- Você está bem? Pergunto por conta da crise epiléptica.
- Fique tranquila. Não irá acontecer novamente. Fique tranquila.

Saíram caminhando pelo bairro e depois de vinte minutos avistaram uma Pajero preta com placa de São Paulo estacionada sobre uma calçada. Omar retirou do bolso uma chave, abriu as portas da Pajero e entraram.

- Liga o som pra gente.

Tocava jazz numa rádio local.

- Por mais que o mundo pire, veja bem Frances, a música sempre existirá sobre nossas cabeças, sobre nossas vidas. A música é intocável.
- Não sei. Acho que música tem sua época, essa aí não me agrada. Muito chata.

Dirigindo Omar riu e se distraiu com o solo de trompete do grupo de jazz. Gostaria de saber quem estava tocando. Torcia para que o apresentador dissesse. Detestava dúvidas. Seguiram-se então mais duas composições de jazz e ao entrar no ar, falando calmamente, o locutor disse ser aquele o programa “Jazz by Jazz” da Rádio Universitária, e anunciou o fim sem disse o nome das canções.

Omar pensou – “Meu Deus. Isso não foi um bom sinal. Merda!”

Logo em seguida um programa sobre a atual conjuntura política do país entrou no ar, com convidados debatedores.

Depois do assassinato da presidente Dilma, exercendo seu segundo mandato, o país se tornou uma terra gigante e sem lei. Com a intervenção da ONU e do governo norte-americano, os grupos de poder conservadores nacionais articularam a grande campanha pró-presidência de um jovem político religioso e negro, Irmão Isacke, que venceu as eleições em 2018.

O panorama político e social do país se encontra desde então como um barril de pólvora, mas não prestes a explodir e sim, com seu pavio sendo acesso diariamente e esse barril, como um Cristo ressuscitado ao terceiro dia, ressurgindo sanguinário e explosivo a cada manhã.

Rumaram para o bairro Cidade Jardim. Estacionaram o carro num descampado ermo e montaram, juntos, o rifle de alta precisão Barret M107, que estava embaixo do banco traseiro da Pajero.

Com a mira telescópica focada no saguão da casa onde o alvo se encontrava, aguardaram em silêncio por cerca de trinta minutos. Então um grupo de pessoas saiu de dentro da casa, conversaram um pouco no saguão e se despediram. Um homem e uma mulher permaneceram parados.

O tiro atingiu a cabeça do homem que caiu violentamente. A mulher se desesperou como uma Jacqueline Onassis redesenhada. Omar deu o rifle a Frances, que começou a desmontá-lo e deu partida no carro.

A cabeça de Omar doía, teve medo de que uma crise de epilepsia o acometesse. Entrou rapidamente numa estrada vicinal na rodovia que levava à cidade de Prata e dirigiu por uns 50 km, encostando o carro na porta de um casebre. Dois homens o esperavam.

Havia um monomotor estacionado dentro de uma plantação de café.

No ar, ao lado de Frances, sobrevoando o barril negro de enxofre e pólvora que havia posto fogo, Uberlândia, agora com seu futuro candidato a prefeito assassinado, Omar pensou em uma maneira de descobrir que linda canção era aquela que ouvira no rádio.

E decidiu voltar àquela cidade apenas quando seu corpo necessitasse de uma cova e do merecido desconhecimento que somente os mortos desfrutam.

*Don King é um norte-americano que foi produtor musical do grupo Jackson 5 e empresário do ex-pugilista Mike Tyson