15h47
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019
Bebeu um gole no gargalo da garrafa, a língua já áspera pela mistura de vinho, cerveja e cigarro. Sentindo o álcool fazer efeito e elevar suas vistas turvas, se acomodou na poltrona.
Na calçada em que se encontrava jogado algumas horas antes, sua cabeça, ao acordar foi a primeira coisa que sentiu. A pele da cabeça, o couro cabeludo sendo arrastado no cimento. Convulsionava. Tinha isso às vezes, monstro sinistro escondido sob seus olhos. Era sempre de repente, súbito.
Às vezes quando tinha soluços, temia que deles, os soluços, como que em contrariada disputa, brotasse a temida crise de epilepsia, impondo sua histeria muscular. Não há quem se sinta à vontade dentro de uma crise de epilepsia. Um caldeirão fumegante, panela de pressão borbulhante. A sensação eminente de que uma multidão de demônios lhe arrancará a língua, ao mesmo tempo em que desejam e tentam sair por todos os seus poros.
Quando tudo acabava sobrava um gosto de sangue em sua boca, nem sempre, mas muitas das vezes que acometia uma visita a esse inferno.
- Dá um gole - pediu ela.
Ele se voltou, corpo arqueado em um quase S. Percebia-se como um boxeador morto em combate e ressuscitado por obrigação contratual, forçado a terminar sua luta. Só que seu Dom King* era um Deus escondido atrás de seu globo ocular. Encoberto pela retina negra de seus olhos.
Assim, ele se virou contorcendo todos os músculos doloridos das costas. Suas vertebras fora do lugar rangeram num imperceptível som, minúsculo aos nossos ouvidos.
- Toma. Vou abrir outra.
- Me morde.
Ele caminhou sorrindo, olhando os prédios emoldurados pela janela gradeada e aberta de seu quarto.
Quando das primeiras crises, ainda adolescente, acordava dos delírios com um tesão desgraçado. Logo já ficava de pau duro, e tinha realmente de ficar sentado, quieto, como todos sugeriam, não para se recobrar do choque, mas justamente, pra tampar o membro rijo nas calças.
Beber e transar depois das crises sempre foram seus principais objetivos. Não havia outras formas melhores de libertar a tensão dos choques e da violência das convulsões.
Abriram as cervejas e jogaram as tampas num latão de metal no canto do quarto.
- Vamos depois destas?
- Sim.
Ele queria perguntar a ela como havia acontecido o surto, mas era decepcionante ouvir algumas pessoas dizendo. Não tinha riqueza de detalhes nem tensão narrativa.
Muitas vezes era apenas - "Você caiu de repente e me assustou".
Como que lendo seus pensamentos, ela inexplicavelmente diz.
- Achei que você ia morrer hoje. Estávamos caminhando, você estava fumando e falando sobre as bolsas de valores quebradas na Europa e da última entrevista do Irmão Isacke, daí seus olhos se fecharam rapidamente, achei que você fosse rir, mas contorceu a cara – e ela imita lindamente a cara que ele tinha feito – e bateu com a cabeça na parede. Se a gente estivesse numa ponte ou em um barranco, você tinha “ido” – e ela ri da possibilidade – Você deu um pulo para o lado de lá e despencou, se debatendo meio que contra a parede. Eu já tinha visto crises mas a tua é muito forte.
- Sou um tipo de hulk imprevisível do cotidiano.
- Você é doido.
- Vou comprar um cigarro. Quer algo?
- Mais cerveja.
Ele riu, vestiu as calças, os chinelos e uma camisa.
- Se apronte que já tá dando a hora.
Frances era ótima companhia. Inteligente, rápida e confiante. Em uma única troca de olhares e num arfar profundo do ar ao entrar em um ambiente, era capaz de compreender tudo o estava ocorrendo em uma situação e à sua volta. Sexto sentido era seu sobrenome. Seus punhos e braços cheios de cicatrizes e marcas feitas com gilete e cortes produzidos por tesouras cegas e facas de cozinha eram signos de sua ruptura com a autocomplacência. Frances há muito tempo era uma solitária, apesar de ser uma mulher muito bonita, o que em certo sentido só reforçava sua melancolia.
Ele desceu pelas escadas os dois andares do Hotel Paris na Avenida Monsenhor Eduardo. Atravessou a rua e entrou em um bar de madeira, misto de botequim e pequeno prostíbulo popular, que inclusive funcionava às tardes, atendendo aos jovens trabalhadores da região, que se deitavam, com nenhuma desenvoltura e alguma vergonha, com as barrigudas moças vestidas de calças legging.
- Um maço de cigarros, por favor. Um Belmont vermelho.
Duas crianças se alimentavam de bolachas e refrigerantes em uma mesa próxima. Filhas das jovens meretrizes, com certeza. Tinham aspecto saudável e o cabelos revoltos característicos de meninas de 8 anos. Cabeleiras indomáveis e brincalhonas que lhes caiam em cachos nos rostos e angelicalmente, com as mãozinhas atabalhoadas, eram jogados para o lado ou prendidos no alto das cabeças.
Atravessou a rua novamente, com um cigarro acesso nos lábios pensando que em sua infância e depois adolescência, havia comido muitos pastéis na feira livre, pelas manhãs, naquela extensa avenida. Muitas vezes vindo de alguma festa de sábado à noite.
Quando saiu de Uberlândia aos vinte e poucos anos pra viver na fronteira do Paraguai, não tinha ainda o entendimento do mundo. Da vida. Não havia amado ainda, não havia passado fome, sentido dor ou se fodido e muito menos pensava que iria um dia matar alguém. Tantos anos depois, retorna justamente para realizar um trabalho na cidade em que nasceu.
Disse à atendente do Hotel que estava saindo e subiu as escadas.
- Frances, vamos?
Ela já estava pronta, vestida de calça jeans justa e botas, colocou uns óculos escuros e foi ao banheiro. Depois, jogou a bolsa no ombro e o esperou vestir uma nova camisa limpa e seus sapatos. Desceram juntos e pediram à atendente que chamasse um táxi. Ele carregava uma mochila de viagem nas costas.
- Vamos para o bairro Roosevelt, amigo. – o taxista partiu rumo ao destino.
O Roosevelt é um bairro nascido nos anos 40 ou 50 e rezava uma lenda sobre ele. Que havia sido projetado por um arquiteto comunista para que servisse de “aparelho”, de esconderijo a perseguidos pela ditadura Vargas. Suas ruas eram totalmente confusas e em vários pontos formavam labirintos, pontos cegos e becos. Caracóis de asfalto e postes de luz. Um lugar facílimo para se perder. Mas, não hoje.
Desceram do táxi a alguns quarteirões do destino final e caminharam adiante. Tocaram o interfone de uma casa com cercas elétricas sobre um muro verde alto.
- Oi? – perguntou a voz de um homem.
- Olá. Sou eu. Omar. – respondeu.
O portão foi aberto.
A área externa da casa era arejada e bonita, decorada com muitas plantas dependuras em xaxins. Um grande cachorro pastor alemão os observava de um canto, com uma cara lerda de quem sabia ser ele, o grande dono de todo aquele pequeno reino arborizado.
- Olá, Omar. – um homem de cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos e bigode preto veio lhes receber - Vamos entrar.
O interior da casa era muito elegante, com grandes tapetes cobrindo o chão, vários quadros e uma adega com garrafas de vinho e cachaça.
- Bem, vamos ao que interessa. O alvo estará na Cidade Jardim, em uma reunião com empresários por volta das seis horas. O endereço você já decorou?
- Claro.
- Não precisamos de alarde nem de grande confusão.
- Obviamente você não precisa dizer isso.
Nelson o olhou nos olhos nesse momento, fixamente. Era um homem acostumado a dizer o que quisesse e pensava. Não estava familiarizado com ninguém lhe dizendo que não precisava falar o que queria.
- Certo. Bem, então tome aqui. – lhe empurrou um envelope que estava sobre a mesa. Olhou novamente para o homem à sua frente. Em pé, Omar lhe pareceu mais velho, sob a sombra do pórtico. Nelson pensou; “um assassino deveria ser mais humilde. Para alguém que não dá valor à vida, deveria entender que a sua própria também não vale nada, e que uma palavra mal dita poderia lhe custar um tiro na nuca, nesse exato momento”. - Ok, Omar. Boa sorte.
- Obrigado.
Saíram sem se cumprimentar ou despedir. Com o dinheiro no bolso e a adrenalina aumentando, sua mente agora passava a raciocinar exclusivamente sobre os detalhes que teriam de cumprir para que o trabalho fosse feito.
- Frances, vamos tomar um café?
- Claro.
Pediram dois cafés em uma lanchonete na Avenida Cesário Crosara.
- Faremos como sugeriu?
- Sim.
- Você está bem? Pergunto por conta da crise epiléptica.
- Fique tranquila. Não irá acontecer novamente. Fique tranquila.
Saíram caminhando pelo bairro e depois de vinte minutos avistaram uma Pajero preta com placa de São Paulo estacionada sobre uma calçada. Omar retirou do bolso uma chave, abriu as portas da Pajero e entraram.
- Liga o som pra gente.
Tocava jazz numa rádio local.
- Por mais que o mundo pire, veja bem Frances, a música sempre existirá sobre nossas cabeças, sobre nossas vidas. A música é intocável.
- Não sei. Acho que música tem sua época, essa aí não me agrada. Muito chata.
Dirigindo Omar riu e se distraiu com o solo de trompete do grupo de jazz. Gostaria de saber quem estava tocando. Torcia para que o apresentador dissesse. Detestava dúvidas. Seguiram-se então mais duas composições de jazz e ao entrar no ar, falando calmamente, o locutor disse ser aquele o programa “Jazz by Jazz” da Rádio Universitária, e anunciou o fim sem disse o nome das canções.
Omar pensou – “Meu Deus. Isso não foi um bom sinal. Merda!”
Logo em seguida um programa sobre a atual conjuntura política do país entrou no ar, com convidados debatedores.
Depois do assassinato da presidente Dilma, exercendo seu segundo mandato, o país se tornou uma terra gigante e sem lei. Com a intervenção da ONU e do governo norte-americano, os grupos de poder conservadores nacionais articularam a grande campanha pró-presidência de um jovem político religioso e negro, Irmão Isacke, que venceu as eleições em 2018.
O panorama político e social do país se encontra desde então como um barril de pólvora, mas não prestes a explodir e sim, com seu pavio sendo acesso diariamente e esse barril, como um Cristo ressuscitado ao terceiro dia, ressurgindo sanguinário e explosivo a cada manhã.
Rumaram para o bairro Cidade Jardim. Estacionaram o carro num descampado ermo e montaram, juntos, o rifle de alta precisão Barret M107, que estava embaixo do banco traseiro da Pajero.
Com a mira telescópica focada no saguão da casa onde o alvo se encontrava, aguardaram em silêncio por cerca de trinta minutos. Então um grupo de pessoas saiu de dentro da casa, conversaram um pouco no saguão e se despediram. Um homem e uma mulher permaneceram parados.
O tiro atingiu a cabeça do homem que caiu violentamente. A mulher se desesperou como uma Jacqueline Onassis redesenhada. Omar deu o rifle a Frances, que começou a desmontá-lo e deu partida no carro.
A cabeça de Omar doía, teve medo de que uma crise de epilepsia o acometesse. Entrou rapidamente numa estrada vicinal na rodovia que levava à cidade de Prata e dirigiu por uns 50 km, encostando o carro na porta de um casebre. Dois homens o esperavam.
Havia um monomotor estacionado dentro de uma plantação de café.
No ar, ao lado de Frances, sobrevoando o barril negro de enxofre e pólvora que havia posto fogo, Uberlândia, agora com seu futuro candidato a prefeito assassinado, Omar pensou em uma maneira de descobrir que linda canção era aquela que ouvira no rádio.
E decidiu voltar àquela cidade apenas quando seu corpo necessitasse de uma cova e do merecido desconhecimento que somente os mortos desfrutam.
*Don King é um norte-americano que foi produtor musical do grupo Jackson 5 e empresário do ex-pugilista Mike Tyson