hoje 21h15
_ bom
nos encontrarmos. como anda a vida? - me perguntou são jorge,
sentado no balanço da mangueira.
_ frágil.
na corda bamba. sempre é um novo recomeço, é toda uma reviravolta.
_ esse
lugar é legal. casa verde. bonita. combina com o nome.
_ também
acho.
_ anda
escrevendo?
_ um
pouco. há sempre uma necessidade desse ritual. é como um vício, um prazer.
_ e
escrevendo sobre o que?
…
_ sobre
muitas coisas. venho deixando o fluxo tomar conta da escrita, uma linha fina
esticada entre uma idéia e perdida entre nenhum ponto à frente. minha intenção
é escrever um romance. algo realmente que eu possa entrelaçar destinos,
definir tragédias.
_
interessante
_ você
devia me ajudar.
_ como eu
poderia?
_ conhece
tantas histórias, já esteve em tantos lugares e viu tantas coisas acontecerem.
talvez me conte uma tão boa que me desperte uma grande inspiração. já estou
cansado de escrever sobre mim e sobre o que conheço tão bem.
_
histórias existem aos montes, saber contá-las é que são elas.
_ não
quero histórias, quero uma estória. quero um segredo mortal, uma grande trapaça
ou uma tremenda emboscada. quero saber de algo tão engraçado que eu role de
rir. quero a pior desgraça que puder me contar.
nesse momento, são jorge me olhou
sério.
_ cuidado
com o que pede, meu rapaz.
vi que ele havia ficado abalado com
minha proposta.
_ te
desafio a contar a mais desgraçada e trágica estória que puder.
_ não
conseguirá suportar.
_ não me
subestime.
…
são jorge abaixa a cabeça e sua
feição se fecha, demonstrando consternação. percebi então ter tocado em
tremendas lembranças com certeza muito doloridas e que lhe devia respeito e
desculpas.
_ olhe,
não se preocupe com isso, esqueça. falemos de outro assunto. da vida. do
futebol. de música. do amor. rssss
são jorge continuou olhando para seus
pés
_ as
desgraças a que se refere. as tremendas tragédias, que busca encontrar e
saber, todas elas, foram em certo momento, histórias de amor. o amor é tão
maravilhoso, e por assim ser, tão volúvel, que muito facilmente se liquemorfa
em gás lacrimogêneo, soda cáustica e excremento na ponta da bota.
não pude deixar de concordar, em
certo sentido, com o que ele dizia.
_ veja
bem robisson, lhe contarei uma estória, ela aconteceu na frança por volta de
1920. havia um homem em paris, se chamava amadeo. era pintor. um bom pintor.
pintava aquarelas muito vivas e iluminadas, influenciado por cézanne e picasso,
chegou mesmo a travar encontros com esses e outros pintores, qua admirava.
amadeo
vivia na parte sul de paris num casebre, que fora de seus avós; imigrantes
tunisianos, e depois que fora de seus pais e agora dele. sua única irmã, mais
velha, morava do outro lado da cidade e os dois pouco se viam. amadeo não tinha
parentes em paris. e não havia família em lugar algum. tios primos
sobrinhos. não havia família para amadeo, simplesmente não existia. a tunisia
era um país destruído pela guerra civil, destroçado em sua árvore genealógica.
quantas pessoas tiveram e mudaram de nome, em seus novos países, aos se
instalarem, fugindo da guerra? ah as guerras, destroem demais.
aos 30 e
poucos anos, amadeo sobrevive da venda; aos amigos simonn e vylova, da pequena
horta que cultiva em sua propriedade, e dos quadros que pinta. lhe sobra tempo
razoável em seu dia pra o trabalho na horta, para a pintura e os afazeres domésticos
e de conserto de sua velha casa de taipas e andaimes. vive razoavelmente
bem, em sua luta diária pela sobrevivência.
- sim?
_ pois
bem, muitas vezes as enormes mazelas que a solidão nos propicia, refletem na
sua alma e quanto mais vasto e desértico seja seu coração, mais desventuras
esse homem terá.
_ mas você
não disse que o amor é um veneno, agora mesmo?
_ sim, mas
não estou dizendo sobre o amor, somente, mas sobre a profundidade que estão
cravadas seus medos dentro do seu coração. há corações que temem tanto o mundo
e o desafio da vida, que se tornam tão maus quanto puderem, buscando contra
atacar e aplacar o vácuo que o medo provoca. a paralisia, a estática. nunca
aprenderão a amar verdadeiramente, no máximo se relacionarão com outros homens
e mulheres pela vida afora, e só.
_ entendo.
_ e amadeo
era um homem com um coração profundamente solitário. freqüentava bordeis sujos,
e se humilhava pedindo afagos. trôpego, quase sempre era escorraçado dos
ambientes, e visto amanhecendo dormindo nas calçadas, sob as marquises das
lojas. não tinha amigos e todos se acostumaram com essa realidade. viciado em
morfina adquiriu, antes dos 30 anos, uma tuberculose crônica e uma febre
vaporosa que o cobria de tempos em tempos, o deixando acamado e aos cuidados
dos seus únicos amigos, o casal de judeus simonn e vylova, que talvez, se não
fossem seus patrões, assim digamos, não se incomodariam em deixá-lo à própria
sorte.
_ um
grande artista bêbado?
_ um homem
com uma dor.
_ entendo.
_ apesar
de todas essas complicações financeiras e de saúde, amadeo gozava de certo
prestígio e reconhecimento da sociedade que lhe acolhia sendo o filho de zlavoc,
o marceneiro, como era chamado seu pai. ao perceber que amadeo tinha
vocações para as artes, zlavoc não quis que seu filho dedicasse tempo ao
desenho e a pintura, e o sobrecarregava nas tarefas pesadas diárias. somente
com a morte do pai, é que amadeo pôde se dedicar a pintura como profissão.
levando sua vida solitária e desregrada, porém batalhadora e honesta aos olhos
de seu círculo social, amadeo ainda era considerado um rapaz que tinha salvação
e rumo. e um buchicho ao seu redor, na boca principalmente das moças, foi
crescendo e fantasiando a lenda de que era moço rebelde e que só sossegaria,
quanto encontrasse uma esposa e formasse uma família.
conhece
uma jovem artista, então com 19 anos, Joanne, pintora como ele. moça tida como
tímida, mas de olhos insinuantes à emoldurar seus silêncios. muito pobre,
joanne se submeteu primeiro a posar para amadeo por uma pequena quantia de
dinheiro e algumas frutas secas. logo em seguida, depois de alguns dias e
alguns quadros produzidos e já na provocação da intimidade, acertaram que não
haveria mais pagamento, pois assim não estaria correto, eram enfim amantes e
joanne se mudou para sua casa, no fim de poucos dias.
_ se
casaram?
_ sim, mas
não sem antes uma grande conturbação, para a época, os envolver.
amadeo
pinta joanne nua. expõe seu quadro numa galeria e a apresenta como sua modelo,
musa e futura esposa. para os carolas da época e as senhoras e fino trato da
sociedade francesa, era um absurdo uma mulher posar nua, para o marido a pintar
e expor daquela forma. isso era papel guardado às prostitutas e mulheres de
baixo calão. amadeo alardeia certa fama após a exposição e joanne que tinha
grande talento, passa a viver a sombra de amadeo, produzindo suas telas por
hobbie, em casa e sem motivação.
nos anos
seguintes a vida segue dura e produtiva. o casal tem um filho e a situação
financeira melhora razoavelmente. mas, com a frágil bonança que adquiriram,
cresce em amadeo os vícios carnais e o mau caratismo. começa a jogar e a viver
constantemente na zona boêmia parisiense, pintando agora os dorsos nus das
jovens concubinas francesas em seus próprios leitos cheirando a sexo, e
aceitando trabalhos de gigolôs para que transmitisse a beleza de suas mulheres,
para o deleite dos clientes, em enormes telas que emolduravam os grandes salões
dos bordéis mais freqüentados da cidade. vendia suas telas e sua arte puramente
para pagar dívidas e dívidas, contraídas em apostas e noitadas infernais. nessa
época, sua tuberculose piora e o vício em morfina e ópio o torna mais
irritadiço e delirante. já não consegue se movimentar sozinho e tem crises
tremendas de tosse.
_ meu
deus.
_ aos
poucos, a família se desestrutura e vai à ruína. enclausurados dentro de sua
própria casa, agora joanne espera o segundo filho do casal. amadeo vende seus
pertences, e até ferramentas de estúdio e trabalho, para comprar comida. se
alimentam de batatas e lingüiças velhas. passam dias isolados do mundo, tão
fracos que não conseguiam chamar ajuda. são encontrados por simonn, sujos,
famintos e desidratados. joanne está delirando e amadeo não consegue pronunciar
uma palavara, devido ao estado de inanição. ambos são internados na casa de
saúde, joanne está prestes a dar a luz e a qualquer hora pode entrar em
trabalho de parto.
a noticia
corre a cidade e as obras do pintor odiado por sua bela arte, por seus nus,
sofre uma valorização enorme. nas casas de prostituição, terços são rezados
pela sua saúde, outros pela sua alma.
_
meu deus, e esse amadeo vez sucesso? nunca ouvi falar?
_ o
sucesso não importa, meu amigo. ele não foi feliz. o sucesso, que se acredita
que ele teve, com toda a certeza, trocaria por uma serenidade verdadeira em sua
vida.
_ sim.
_ amadeo
morre numa manhã, sozinho como viveu a vida, no quarto 17 da casa de saúde.
joanne recebe a triste notícia, visita em silêncio amadeo, e lhe deixa uma
mecha de seu cabelo negro. no dia seguinte, grávida, se atira da janela do seu
quarto.
_
putz.
_ por ter
suicidado, o padre não quis realizar o enterro, e sem família seu corpo não foi
reclamado, e permaneceu exposto sob o sol, enegrecendo a pele, antes alva e
linda.
um homem
recolheu o cadáver de joanne e o levou ao sr. simonn, que aterrorizado o mandou
embora. joanne foi atirada na beira do rio, onde os urubus e pequenos abutres
que rondam as estrebarias de paris, devoraram suas vísceras, e onde depois sua
carcaça, com seu filho na barriga, apodreceu entre as flores e a grama verde,
por muitos dias ainda, e se misturou ao solo pela eternidade
adiante. amadeo foi enterrado nu, em uma cova rasa do cemitério da casa de
saúde.
são jorge me olhou nos olhos, como
sempre fazia, quando dizíamos algo realmente importante. e eu disse …
_ e
o amor, jorge?
_ foi
morto.
_ por
eles?
_ não. por
nós.
_ como
assim?
_ não
conhece essa história?
_ não
_ pois
então. se familiarize. ela é a sua.
_ claro
que não é minha. é muito triste. é uma história desgraçada. por isso nunca
gostei de dizer essa palavra.
_ faz bem
em não dizê-la. não digo que é, ou será a sua história, mas que é a sua
história, por que pode acontecer com qualquer um. amor e loucura são faces da
mesma moeda, meu amigo. mataram o amor muitas vezes na vida desse homem,
amadeo. não foi o amor de sua mulher que o matou, esse eles viveram, o quanto
puderam. foi o amor próprio. fizeram desse homem fantástico, um artista
sensível e inteligente, um bicho, o tiraram a dignidade e o deram um pedaço de
carne podre para comer como um cão do infernos. esse homem, robisson, foi um
dos muitos homens que caminham mortos sobre a terra, todos os dias.
realmente a historia era triste,
talvez não a mais triste estória que exista, mas bastante trágica.
_ será que
ajudei você? a te inspirar para seu novo livro?
_ sim.
acredito que sim
_ que
bom.
…
_
robisson?
_
diga.
_ aceita
uma manga? - e uma linda fruta verde
e rosa caí, exatamente, nas mãos do santo -não sei apenas contar boas
estórias. já fui moleque também,, sei como trepar em árvore e pegar fruta no
pé. rsss
_ entendi,
e por que não subiu e pegou ao invés de transportar a manga pra tua mão?
_ se
esqueceu, ¨para os poetas algumas coisas são bem complicadas, e outras muito
fáceis¨.
se movimentou no balanço, rindo.
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