sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Saudosa Maloca ou o fim dos “campinhos de pelada” artísticos



Robisson Sete

Já há alguns anos os cronistas esportivos apontam que a crescente especulação imobiliária nas cidades brasileiras vem produzindo um efeito nocivo na formação de novos atletas e jogadores de futebol, devido ao desaparecimento dos diversos campinhos de várzea espalhados pelos terrenos baldios das, principalmente, periferias do país.

O fim do toque sutil na bola, do drible matemático e da ginga de quem joga descalço arrancando a tampa do dedão ao tentar uma finta ou um elástico, é imposto, invisivelmente, a todo o tempo em contraponto de um treinamento mecânico e moderno. Essa nova lógica vem interferindo diretamente no rendimento e no próprio talento concentrado da juventude esportista. Sem os campos de várzea mais garotos buscam as escolhinhas “profissionais” e um certo tipo de homogeneização no tratamento dos fundamentos e da técnica é dado. Antes de sentirem as intempéries e dificuldades do futebol amador, os garotos já são incensados a mini-profissionais e, enfim, um bundamolismo futebolístico se implanta na identidade desses atletas, tão jovens e já tão desprovidos, muitas vezes, tão cedo, de chama e de alma.

Enfim, futebol no ‘país do futebol’, é uma religião composta de amores, ódios, futricas e disse-me-disses, fogo-amigo e muita gaitada. E violência desmedida também, nas últimas décadas principalmente, e dinheiro, muito dinheiro.

Falo sobre o futebol para poder falar de arte. Pois o que quero tratar nesse texto, na verdade não é sobre o esporte bretão, mas sim sobre os últimos suspiros da mítica República Maloca, situada na antiga Rua Nove no bairro Santa Mônica, bem em frente ao portão da UFU na Avenida Segismundo Pereira.

Essa república que tem, mas há controvérsias, por volta de quinze a vinte anos de existência e que já abrigou tantas e diversas almas; estudantes, professores, artistas, músicos, poetas, malucos de toda estirpe, bandas, coletivos artísticos e políticos e nos últimos tempos, também fanáticos jogadores de videogame, chega ao fim. Será demolida, juntamente com a antiga casa ao lado, para que no espaço dos dois terrenos seja erguido um ‘simpático’ prédio de dois ou três andares, onde os vizinhos não se cumprimentam pela manhã.

A especulação imobiliária corrói a cidade e como ocorre com os campos de ‘pelada’ pelo país, realoca os espaços conforme a lógica do capital e do interesse financeiro. Não é a primeira e nem será a última república ou casa bonita e espaçosa, com árvores, terra e grama, que será destruída nos arredores da Universidade Federal de Uberlândia. Mas é que com a Maloca não devia acontecer isso, não devia acabar, morrer e ficar somente na memória. 

É um sentimento que ocorre quando pensamos sobre nossas mães, - “Mãe nunca devia morrer”- devia ser algo permanente, e até quando estivéssemos velhinhos nossas mães ainda estariam com trinta e poucos anos nos amparando para a vida cotidiana não nos esvair a seiva primal, que compõe o homem e a mulher.

Mas infelizmente não é assim, tanto com nossas mães, como com outros amores. As coisas acabam, findam, é um processo químico dessa nossa vida no planeta Terra. Quem sabe em outros mundos, algo possa ser eterno. Aqui, não.

A Maloca, que ao que parece, ganhou esse nome de seus últimos moradores, nos quatro ou cinco anos recentes, é como um campinho de várzea artístico e fervilhante, com sua sala de ensaios, com seu espaço amplo, suas árvores e sombras, onde, após as aulas, conferências infindáveis sobre conteúdos acadêmicos foram “digeridos” e debatidos, ao som de Jethro Tull ou de Nelson Cavaquinho. Onde amores se formaram, e também terminaram, filhos foram gerados, viagens à Congressos e manifestações foram combinadas, passeios à cachoeiras foram arquitetados, discussões políticas foram travadas, Coletivos montados, teses de Mestrados e Doutorado suadas dentro das noites, além do tradicional sexo, drogas & rocknroll!!!

Tantas festas que já ocorreram; de aniversário, de fim de ano, de começo de semestre, pra juntar uma grana pro aluguel, um chá de bebê pros amigos que esperam filhx que está por vir; de Carnaval, a Festa da Transa, enfim a república sempre foi um palco aberto pra arte, pra música, para os artistas.

Quem nunca beijou na boca ou passou um certo tipo de vexame num fim de festa?

Não é um privilégio da Maloca ser esse espaço tão prolífico em termos de criação, arte, política e música. Há sim, várias outras repúblicas que percorrem essa cartilha, mas é que a Maloca é especial, vai acabar e vai fazer falta.

Quem sabe, os novos moradores, ouvirão misteriosamente, no meio da noite, como que assentados sobre um antigo cemitério indígena assombrado, risos e gargalhadas, retumbando nos cômodos.

Serão nossas vozes ecoando no espaço infinito buscando sempre a expressão, numa festa interminável. E nenhuma taxa de condomínio ou síndico competente, poderá dar jeito nisso!




Festa SAUDOSA MALOCA
República Maloca # Rua João Pereira da Silva (antiga 9) nº94 – Santa Mônica (em frete a portaria da UFU na Segismundo)                                                             
Sábado 08 de novembro 16h - Entrada 5$
                                                                                                                      
Convidados:
Toninho Sete Cordas, Gustavo do Cavaco, Fausto Rib, Kainã Bragiola   
Bandas:
Dikika; Guimes, Elaine, Marco Nagoa                                                                             
Uberrante; Gustavo Brito, Manoel Moura, Moisés Oliveira
Quinteto Madruga; Ana Luiza, Talita Vasconcelos, Ricardo Abdala                           
Curva de Rio; Robisson Sete, Daniel Teodoro, Dino, Rogerio Lúcio
Postielka; Pedrinho Reis, Jordok
MetrôCapuêra; Regis Queiroz, Serjão
& Jackinho Will !!!!

domingo, 26 de outubro de 2014

País

Antes de qualquer cor,
azul, verde ou amarelo, 
existe no homem um 
vermelho
cru

Antes de qualquer 

bandeira, flâmula
ou estandarte
existe no homem um
corpo
nu

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Poemanifesto - Se poesia não vende


Se poesia não vende,
compremos então um naco do coração do poeta,
enegrecido pela fumaça do cigarro e embrulhado em papel de pão

Compremos um ou dois de seus maiores cílios,
pontiagudos e piscantes – para servirem de enfeites de abajur -,
um saco de suas unhas roídas
e alguns chumaços de seus cabelos revoltos

Se poesia não vende, adquiramos três quartos
de músculo dos braços dos poetas, fatigados,
do cotovelo ao punho,
da escrita, fenecente e morta,
corcunda sobre a máquina

Em prestações, financiemos seus rins
ou um ou outro fígado de bons poetas
menos alcoólicos

Com um ou dois anos de consórcio,
você poderá adquirir, novinho, um poeta,
desses recitantes, das novas tendências,
mais contemplativos que românticos

Aderindo a algum novo plano de saúde,
poderá adquirir as amostras de sangue,
chapas de pulmão e até mesmo um
eletrocardiograma recente
dos batimentos cardíacos do escriba

Raridade seria um encefalograma que demonstrasse,
em gráficos, as tendências modernistas de seus
versos livres
e como Rimbaud e Baudelaire fizeram sua cabeça

Se poesia não vende, adquira ao menos um
pôster nu do poeta
e o afixe na porta de seu banheiro – muitos deles,
os poetas, são bem gostosos!

Faça uma gincana de poetas ou mesmo os apedreje,
amarre-os em praça pública com coleiras de couro
ou os enjaule em grades de roliços ferros fundidos

Os que não forem adotados na exposição,
enviem para amigos e parentes distantes
-“não queremos cuidar de poetas nesta casa”-
disse a mulher, tia que mora em Maceió,
ao receber, de surpresa, o recém-chegado poeta
devidamente remetido a ela pela família do Sudeste

Se poesia não vende, contrate um poeta
para sua festa de debutante,
depois de alguns goles a emoção toma conta
e os convidados gostarão da leitura completa
dos picantes poemas de Hilda Hilst

Se poesia não vende,
então não negue nunca um trago, um tapa,
nem tempestade ou maremoto,
um riso ou um resto, um cuidado
ao atravessar a rua ou um afago
na nuca
do poeta

E se lhes der uma pouca,
qualquer que seja, atenção
eles, de olhos vibrantes
fantasmagoricamente voltarão,
com ideias na cabeça,
quase como delirantes
cineastas do Cinema Novo
e lhe ofertarão, segurando com todo o cuidado
- como se fossem afiadas navalhas cortantes ou
mesmo o pequeno corpo morto de um recém nascido -
pilhas de seus poemas, rabiscados,
nas mãos