quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um quarto em chamas




Um poema arranha o vidro da janela com as unhas, anunciando sua presença numa angustiante e lenta ranhura, como às vezes faz a chuva num começo de tempestade

Depois bate rispidamente na vidraça, golpeando, esmurrando

Impondo-me a fazê-lo existir

É sempre assim, inesperado e insistente e não tenho certeza se já me acostumei a isso

Forçando sua entrada se arremessa contra a superfície transparente e cortante, sem medo de que seu corpo seja lacerado se, com o impacto, tudo se estilhaçar

Ele deseja existir e me escolheu para arranca-lo de sua carne ao devora-lo vivo

Enxergo seus lábios, furtivamente sussurram algo

Tem dentes sujos e olheiras escuras, seus olhos são minúsculos

Então levanto da cama e apanho alguns livros, arranco suas folhas e preparo no meio do quarto uma fogueira para receber meu novo amigo incendiário

As chamas crescem, o vidro se estraçalha, o ar se torna pesado e irrespirável e a presença monumental do poema toma conta de todo o ambiente

Sinto seu impacto no peito, a boca instantaneamente seca e os olhos coçam

Fagulhas rebrilham pelo ar tremeluzindo à minha volta, estou em chamas e minhas mãos são torrões de carvão, negros e fumegantes

Há tanto calor dentro do quarto que insetos e moscas caem mortos, ardendo ao meu redor, as lâmpadas explodem e a madeira das estantes range endemoniada

Em delírio, como amantes suicidas, num último reencontro mortal, nos abraçamos

Calidamente nos beijamos, eu e meu poema, como fracassados misericordiosos que somos, não nos escondendo em frestas sociais e purgando do singelo desconhecimento de nossa conjunta obra

Mas isso pouco importa, pois o fogo ainda continua queimando no meio do quarto e dentro da minha cabeça as labaredas lambem meus lóbulos frontais

O poema então senta em uma cadeira e dá o primeiro gole numa garrafa que subitamente surge em suas mãos

O tempo é curto
Não há nada o que dizer

Pego uma caneta, pouso no papel, deixo o sangue escorrer, o calor toma conta dos meus ossos e então começo a escrever enquanto as chamas se alastram e tudo ao nosso redor começa a incendiar



#