domingo, 28 de junho de 2015

Arrasta sua sandália de odalisca triste pelo asfalto


Sua pele de animal selvagem
Coberta de fuligem, sujeira e sal
Suas escamas sobre as costelas salientes
Denunciando a fome que te ultrapassa

Ancorado em minha mesa, observo
A nervura de teus passos, buscando mais uma dose
O traficante que não chega
Te oprime como o tombo de uma guilhotina

Sob o astro frio da tarde que finda
Sua agonia, tão imensa, quase nubla o sol poente
Se eu quisesse poderia tocar sua angústia
E fazer dela pequenos cubos de gelo d’alguma bebida

Arrasta sua sandália de odalisca triste pelo asfalto
Suas unhas mal feitas, como garras de um bicho enjaulado
Eu sei como dói, são os ossos rangendo dentro da carne
São os olhos que não se interessam por mais nada

Dentro de sua calcinha, pulsa, teu sexo aberto em ferida
Corrimento fétido e viscoso, pelas pernas escorre e corrói a pele
Já foi bela, foi como flor, dama singela e longilínea
Agora apodrece viva, chamada antes Simone

Agora a chamam pretinha da Vila Silva
Louca dos cabelos arrancados, magrela desgraçada
Favelada sem pai nem mãe, ladra de beira de esquina
Mas eu ainda te chamarei Simone, pela vida que te negaram

E pela dor que não posso te arrancar
Pela incapacidade de te salvar
Pela miséria que carrego comigo
_ Tome um cigarro, Simone, se cuide.

domingo, 7 de junho de 2015

Um Cisco nos olhos



Apertou no peito o bilhete amassado. Arremessou a bituca de cigarro, colocou as mãos no bolso e aninhou com os ombros a mochila nas costas. Olhou os carros que passavam rápidos na Avenida, nem sinal do ônibus. A passagem custa R$3,10. Amanhã, vai tentar mais empresas, vai enfrentar mais entrevistas, vai ser testado novamente. Vai buscar um emprego. Como um boi no matadouro, como um porco sendo castrado.

Eram dez horas da noite e tem fome. Em sua casa há apenas alguns pães, já duros, e um pacote de macarrão. Mas não tem molho e pensa em fazer o macarrão com um tablete de caldo de carne. Sabor churrasco.

Estava contrariado pela derrota que sofrera no bar do Ramiro. Não havia resistido à tentação e passou no bar pra beber uma pinga, bebeu duas e desafiou o Ramiro pra uma melhor de três. Perdeu as duas primeiras partidas e jogaram a terceira só de sarro. Estúpido, pensara que pudesse vencer Ramiro e sair com mais dez reais da banca e ainda beber outra pinga. Foi tolo, como se aposta dinheiro com o dono do bar, o dono da mesa? Imbecil.
Perdeu dez reais.
Tanto dinheiro pra quem tem fome.

Dentro do ônibus, os passageiros calados, quietos. O ônibus está vazio. O terminal de desembargue ao contrario já está lotado, pessoas andando rápido, crianças de colo, senhores idosos e jovens voltando da escola. Todos esperando o ônibus que os levarão aos seus bairros, às suas casas. Um cheiro de pipoca, de sanduíche, de carne fritando se mistura no ar.  O gosto da gordura lhe vem à boca. Lembra-se da sensação de ter seus dentes rasgando um naco de carne. Há quanto tempo não come um pedaço de carne? O estômago começa a doer. É como se o socassem por dentro, forte, como se um boxeador o golpeasse o baixo ventre e o baço. A cachaça pegou em cheio suas entranhas e ácidos intestinais e os revirou como fazem com o lixo os moradores de rua, sobrando somente um chorume que, como um cachorro sobre a carniça, lhe devorava por dentro.
As tevês do terminal estavam sintonizadas em um telejornal e a todo momento surgiam, entre as falas dos repórteres, rostos de homens, com seus nomes e números com muitos zeros logo abaixo de suas caras. Seus rostos surgiam na tela, imensos. Eram os políticos da tal lista de corrupção. Uns caras começaram a falar sobre aquela merda toda ao seu lado e quando percebeu que poderiam puxar assunto, colocou os fones no ouvido. Mas não ligou a música no celular. Continuou a ouvir os homens agora protegido pela barreira dos headfones e seguro de que não lhe dirigiriam a palavra.

Listas de nomes. Isso o lembrou do dia fatídico em que seu nome surgiu na lista de demissões do canteiro de obras, numa bela manhã de sol. Inesperadamente. Chegou ao canteiro e um amigo o olhou de forma estranha, outros dois vieram lhe cumprimentar sérios. “Que foi mermão?“. Seu nome estava no fim da primeira folha, das duas pregadas na porta do almoxarifado. Francisco Rocha, e em seguida seu RG. O encarregado das finanças disse que a obra estava em conclusão e que decidiram cortar custos. Ganharia todos os direitos e o aviso prévio também seria pago.

Esse foi um bom período, bons meses. Ralava muito é verdade, mas tinha sua grana, tinha amigos, tinha uns chapas. E a grana era até boa. Dava pra sair no fim de semana, pagar umas cervejas para as meninas. Beber uns destilados dos bons. E a amizade entre os caras era firmeza. Às vezes, rolava uns empréstimos, quem ainda tinha algum dinheiro no fim do mês, segurava as brejas e as sinucas dos sem grana. No dia do pagamento era como o canto do galo, logo pela manhã, certeiro. Quem devia já passava o dinheiro vivo na mão do credor. Agradecia o empréstimo e se dispunha a ajudar caso o outro precisasse. Era como um acordo no fio do bigode, na palavra. Havia uma justeza entre aqueles homens. E quem não cumpria recebia a represália dos demais. “dá mancada não mermão“.

Ele gostava desses códigos, dessa confiança e camaradagem implícita. Era o segundo emprego dele na cidade, e começava a se interessar pela construção, pelo avanço colossal de uma obra, pela ideia de que suas mãos ergueriam tanto aço e concreto rumo ao céu infinito, modificando violentamente a paisagem. Observava também que muito dinheiro circulava ali, que os donos eram muito ricos, que andavam em carrões novos, que as contas e os gastos eram todos na casa dos milhões e isso o agradava, estar próximo de dinheiro. Começou a pensar que podia se tornar um encarregado ou um motorista de guindaste talvez, porque os motoristas não carregavam peso e ficavam boa parte do tempo, muitas horas do dia escorados em alguma sombra aguardando as ordens para subirem nas cabines das altíssimas máquinas e trabalharem sentados, enquanto ele, como servente só parava pra tirar o suor da testa. E os motoristas de guindaste por mais que trabalhassem, mantinham suas roupas muito mais limpas. Isso também o interessava.

Mas nada disso aconteceu, foi demitido, recebeu todo o seu acerto, alguns mil reais e os consumiu rapidamente em alguns meses, procurando outro emprego. Nos últimos tempos havia feito um bico num restaurante em troca do almoço, lavando as louças e todo o piso do salão, depois das três da tarde, quando fechavam a cozinha. Que se lembre, foi lá que mordeu pela última vez algo que se possa chamar de carne.

Seus dentes doíam, era a fome. Tinha que sair do terminal de embargue logo, o cheiro dos sabores da comida, e as lembranças ruins, o corroíam o estômago. Ter fome dói.


Merda de ônibus que não chega.

_ continua

domingo, 29 de março de 2015

À beira da queda


Um bom poema
te pega pela garganta já na primeira linha
subitamente, nas linhas seguintes, como um
boxeador costa-riquenho, te acerta mais dois golpes
a partir disso você se interessa pelo combate
limpa o canto da boca e se torna mais ligeiro e astuto

Seus olhos se fixam nas palavras, seguindo as linhas
e você continua a luta, as pupilas se dilatam
há eletricidade no ar e um zumbido surdo começa a ecoar
no oco de seu crânio, como se abelhas, trêmulas e inquietas
cantassem um novo hino, numa invisível colmeia
dependurada atrás de sua orelha esquerda

As palavras, como um valentão injusto, começam
a golpear, lhe arranham a goela como uma bebida forte e amarga
te acuando num desfiladeiro íngreme, sem saída, à beira da queda
te encurralando enquanto as imagens passam em frente aos seus olhos
como uma manada de animais selvagens fugindo do fim do mundo,
e é como uma febre intensa e você engole seco; são vertigens

Um bom poema
nunca te abandonará,
ele te perseguirá,
te impedirá de saltar a ponte,
de investir na Bolsa de Valores,
de se envolver com Deus

Você poderá morrer abraçado
a um bom poema
ele te guiará ao encontro de Caronte e te impedirá de,
durante a travessia, atirar seu corpo nas águas do rio
ou enfiar sua cabeça dentro do forno e respirar o gás
depois de escrever seu último verso na fria palma da mão

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um quarto em chamas




Um poema arranha o vidro da janela com as unhas, anunciando sua presença numa angustiante e lenta ranhura, como às vezes faz a chuva num começo de tempestade

Depois bate rispidamente na vidraça, golpeando, esmurrando

Impondo-me a fazê-lo existir

É sempre assim, inesperado e insistente e não tenho certeza se já me acostumei a isso

Forçando sua entrada se arremessa contra a superfície transparente e cortante, sem medo de que seu corpo seja lacerado se, com o impacto, tudo se estilhaçar

Ele deseja existir e me escolheu para arranca-lo de sua carne ao devora-lo vivo

Enxergo seus lábios, furtivamente sussurram algo

Tem dentes sujos e olheiras escuras, seus olhos são minúsculos

Então levanto da cama e apanho alguns livros, arranco suas folhas e preparo no meio do quarto uma fogueira para receber meu novo amigo incendiário

As chamas crescem, o vidro se estraçalha, o ar se torna pesado e irrespirável e a presença monumental do poema toma conta de todo o ambiente

Sinto seu impacto no peito, a boca instantaneamente seca e os olhos coçam

Fagulhas rebrilham pelo ar tremeluzindo à minha volta, estou em chamas e minhas mãos são torrões de carvão, negros e fumegantes

Há tanto calor dentro do quarto que insetos e moscas caem mortos, ardendo ao meu redor, as lâmpadas explodem e a madeira das estantes range endemoniada

Em delírio, como amantes suicidas, num último reencontro mortal, nos abraçamos

Calidamente nos beijamos, eu e meu poema, como fracassados misericordiosos que somos, não nos escondendo em frestas sociais e purgando do singelo desconhecimento de nossa conjunta obra

Mas isso pouco importa, pois o fogo ainda continua queimando no meio do quarto e dentro da minha cabeça as labaredas lambem meus lóbulos frontais

O poema então senta em uma cadeira e dá o primeiro gole numa garrafa que subitamente surge em suas mãos

O tempo é curto
Não há nada o que dizer

Pego uma caneta, pouso no papel, deixo o sangue escorrer, o calor toma conta dos meus ossos e então começo a escrever enquanto as chamas se alastram e tudo ao nosso redor começa a incendiar



#

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Um poema sem nome




Se meu filho se chamar Benjamin
faremos juntos um som, livre e experimental,
bem jazz, talvez com o Jack, colhendo notas,
como beija-flores sugando uns girassóis e alguns jasmins

Se minha filha se chamar Teresa
serei seu cúmplice, ligeiro, em assaltos a reinos imaginários,
ela sendo sempre muito mais companheira de fortaleza
- com a cara suja de terra, escavando túneis para nossa escapada –
do que donzela ou princesa

Se seu nome for Pablo
caminharemos pelas ruas de cidades antigas,
pisando nossos calcanhares calçamentos de pedras ancestrais,
visitando calabouços, catedrais e gargalhando em descalabro

Se seu nome for Rita
levará onde for um sorriso no rosto, e vez ou outra, ainda pequena,
andará pela casa tendo nos cabelos flores de margarida,
dançando dentro de um curto vestidinho rodado de chita

Se se chamar Benício
prevejo muitos tombos de bicicleta, joelhos ralados,
ansioso para abandonar as rodinhas, me ensinará sobre
a infante insensatez das crianças
e todos os dias serão um eterno recomeço e início

Se se chamar Manuela
gostará dos astros e se interessará pelas estrelas,
será questionadora e arisca, como as personagens de Jorge Amado,
e seus cabelos lembrarão de fato, em dado momento, os cabelos de Gabriela

Se teu nome for João Francisco
gostará de futebol, iremos a partidas em estádios
e o time que você escolher torcer será então meu novo time também
e chorarei ao seu lado nas conquistas,
dizendo ser em meu olho somente um repentino cisco

Se teu nome for Maitê
dividirei apenas em três as estações do ano,
criando uma nova e quarta primavera outonal,
onde as folhas das árvores e os frutos vibrantes florescerão
simplesmente por conta dos sorrisos que brotam em você

Se o chamarmos Joaquim
poderá ser um músico, violonista,
desses de ganhar corações com um sorriso e escrever
canções de amor sobre a disputa entre Pierrôs e Arlequins

Se a chamarmos Júlia
ouviremos discos de vinil, leremos poemas de John Lennon sobre sua xará
e aos nossos pés bolinaremos com dedinhos e dedões
nossa gata preta, que chamaremos Tertúlia

Se você se chamar Ernesto
discutiremos política e economia,
discorreremos sobre as guerras e as revoluções,
lhe explicarei sobre o Wikileaks e conceberemos, nós,
nosso particular e familiar “contra-o-mundo” manifesto

Se você se chamar Janaína
gostará do mar, do vento solar salgado na face, e quando já adulta,
morando no interior, será pelos amigos conhecida sempre;
sereia, seja das águas de cachoeira ou de fluorescente piscina

Se meu filho se chamar Dante
organizaremos nossa biblioteca pelas cores das capas dos livros,
em festiva ordem degrade, seu exemplar d’Os meninos da Rua Paulo
ao lado das minhas epígrafes e micro contos de Jorge Abrantes
e da Literatura Latina, fantástica e delirante

Se minha filha se chamar Nara
será pequena leoa delicada, de cabeleira volumosa,
sempre com as melhores perguntas na ponta da língua,
como as personagens de Drummond que um dia eu amara

Meu poema mais bonito,
ainda sem nome,
se avolumando no mundo,
silencioso e urgente
Nesse momento
eu olho e ainda não entendo,
à minha volta, venta, mas
o tempo, este parou de repente