segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Um hotel na Monsenhor Eduardo



15h47
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Bebeu um gole no gargalo da garrafa, a língua já áspera pela mistura de vinho, cerveja e cigarro. Sentindo o álcool fazer efeito e elevar suas vistas turvas, se acomodou na poltrona.

Na calçada em que se encontrava jogado algumas horas antes, sua cabeça, ao acordar foi a primeira coisa que sentiu. A pele da cabeça, o couro cabeludo sendo arrastado no cimento. Convulsionava. Tinha isso às vezes, monstro sinistro escondido sob seus olhos. Era sempre de repente, súbito.

Às vezes quando tinha soluços, temia que deles, os soluços, como que em contrariada disputa, brotasse a temida crise de epilepsia, impondo sua histeria muscular. Não há quem se sinta à vontade dentro de uma crise de epilepsia. Um caldeirão fumegante, panela de pressão borbulhante. A sensação eminente de que uma multidão de demônios lhe arrancará a língua, ao mesmo tempo em que desejam e tentam sair por todos os seus poros.

Quando tudo acabava sobrava um gosto de sangue em sua boca, nem sempre, mas muitas das vezes que acometia uma visita a esse inferno.

- Dá um gole - pediu ela.

Ele se voltou, corpo arqueado em um quase S. Percebia-se como um boxeador morto em combate e ressuscitado por obrigação contratual, forçado a terminar sua luta. Só que seu Dom King* era um Deus escondido atrás de seu globo ocular. Encoberto pela retina negra de seus olhos.

Assim, ele se virou contorcendo todos os músculos doloridos das costas. Suas vertebras fora do lugar rangeram num imperceptível som, minúsculo aos nossos ouvidos.

- Toma. Vou abrir outra.
- Me morde.

Ele caminhou sorrindo, olhando os prédios emoldurados pela janela gradeada e aberta de seu quarto.

Quando das primeiras crises, ainda adolescente, acordava dos delírios com um tesão desgraçado. Logo já ficava de pau duro, e tinha realmente de ficar sentado, quieto, como todos sugeriam, não para se recobrar do choque, mas justamente, pra tampar o membro rijo nas calças.

Beber e transar depois das crises sempre foram seus principais objetivos. Não havia outras formas melhores de libertar a tensão dos choques e da violência das convulsões.

Abriram as cervejas e jogaram as tampas num latão de metal no canto do quarto.

- Vamos depois destas?
- Sim.

Ele queria perguntar a ela como havia acontecido o surto, mas era decepcionante ouvir algumas pessoas dizendo. Não tinha riqueza de detalhes nem tensão narrativa.
Muitas vezes era apenas - "Você caiu de repente e me assustou".

Como que lendo seus pensamentos, ela inexplicavelmente diz.

- Achei que você ia morrer hoje. Estávamos caminhando, você estava fumando e falando sobre as bolsas de valores quebradas na Europa e da última entrevista do Irmão Isacke, daí seus olhos se fecharam rapidamente, achei que você fosse rir, mas contorceu a cara – e ela imita lindamente a cara que ele tinha feito – e bateu com a cabeça na parede. Se a gente estivesse numa ponte ou em um barranco, você tinha “ido” – e ela ri da possibilidade – Você deu um pulo para o lado de lá e despencou, se debatendo meio que contra a parede. Eu já tinha visto crises mas a tua é muito forte.
- Sou um tipo de hulk imprevisível do cotidiano.
- Você é doido.
- Vou comprar um cigarro. Quer algo?
- Mais cerveja.

Ele riu, vestiu as calças, os chinelos e uma camisa.

- Se apronte que já tá dando a hora.

Frances era ótima companhia. Inteligente, rápida e confiante. Em uma única troca de olhares e num arfar profundo do ar ao entrar em um ambiente, era capaz de compreender tudo o estava ocorrendo em uma situação e à sua volta. Sexto sentido era seu sobrenome. Seus punhos e braços cheios de cicatrizes e marcas feitas com gilete e cortes produzidos por tesouras cegas e facas de cozinha eram signos de sua ruptura com a autocomplacência. Frances há muito tempo era uma solitária, apesar de ser uma mulher muito bonita, o que em certo sentido só reforçava sua melancolia.

Ele desceu pelas escadas os dois andares do Hotel Paris na Avenida Monsenhor Eduardo. Atravessou a rua e entrou em um bar de madeira, misto de botequim e pequeno prostíbulo popular, que inclusive funcionava às tardes, atendendo aos jovens trabalhadores da região, que se deitavam, com nenhuma desenvoltura e alguma vergonha, com as barrigudas moças vestidas de calças legging.

- Um maço de cigarros, por favor. Um Belmont vermelho.

Duas crianças se alimentavam de bolachas e refrigerantes em uma mesa próxima. Filhas das jovens meretrizes, com certeza. Tinham aspecto saudável e o cabelos revoltos característicos de meninas de 8 anos. Cabeleiras indomáveis e brincalhonas que lhes caiam em cachos nos rostos e angelicalmente, com as mãozinhas atabalhoadas, eram jogados para o lado ou prendidos no alto das cabeças.

Atravessou a rua novamente, com um cigarro acesso nos lábios pensando que em sua infância e depois adolescência, havia comido muitos pastéis na feira livre, pelas manhãs, naquela extensa avenida. Muitas vezes vindo de alguma festa de sábado à noite.

Quando saiu de Uberlândia aos vinte e poucos anos pra viver na fronteira do Paraguai, não tinha ainda o entendimento do mundo. Da vida. Não havia amado ainda, não havia passado fome, sentido dor ou se fodido e muito menos pensava que iria um dia matar alguém. Tantos anos depois, retorna justamente para realizar um trabalho na cidade em que nasceu.

Disse à atendente do Hotel que estava saindo e subiu as escadas.

- Frances, vamos?

Ela já estava pronta, vestida de calça jeans justa e botas, colocou uns óculos escuros e foi ao banheiro. Depois, jogou a bolsa no ombro e o esperou vestir uma nova camisa limpa e seus sapatos. Desceram juntos e pediram à atendente que chamasse um táxi. Ele carregava uma mochila de viagem nas costas.

- Vamos para o bairro Roosevelt, amigo. – o taxista partiu rumo ao destino.

O Roosevelt é um bairro nascido nos anos 40 ou 50 e rezava uma lenda sobre ele. Que havia sido projetado por um arquiteto comunista para que servisse de “aparelho”, de esconderijo a perseguidos pela ditadura Vargas. Suas ruas eram totalmente confusas e em vários pontos formavam labirintos, pontos cegos e becos. Caracóis de asfalto e postes de luz. Um lugar facílimo para se perder. Mas, não hoje.

Desceram do táxi a alguns quarteirões do destino final e caminharam adiante. Tocaram o interfone de uma casa com cercas elétricas sobre um muro verde alto.

- Oi? – perguntou a voz de um homem.
- Olá. Sou eu. Omar. – respondeu.

O portão foi aberto.

A área externa da casa era arejada e bonita, decorada com muitas plantas dependuras em xaxins. Um grande cachorro pastor alemão os observava de um canto, com uma cara lerda de quem sabia ser ele, o grande dono de todo aquele pequeno reino arborizado.

- Olá, Omar. – um homem de cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos e bigode preto veio lhes receber - Vamos entrar.

O interior da casa era muito elegante, com grandes tapetes cobrindo o chão, vários quadros e uma adega com garrafas de vinho e cachaça.

- Bem, vamos ao que interessa. O alvo estará na Cidade Jardim, em uma reunião com empresários por volta das seis horas. O endereço você já decorou?
- Claro.
- Não precisamos de alarde nem de grande confusão.
- Obviamente você não precisa dizer isso.

Nelson o olhou nos olhos nesse momento, fixamente. Era um homem acostumado a dizer o que quisesse e pensava. Não estava familiarizado com ninguém lhe dizendo que não precisava falar o que queria.

- Certo. Bem, então tome aqui. – lhe empurrou um envelope que estava sobre a mesa. Olhou novamente para o homem à sua frente. Em pé, Omar lhe pareceu mais velho, sob a sombra do pórtico. Nelson pensou; “um assassino deveria ser mais humilde. Para alguém que não dá valor à vida, deveria entender que a sua própria também não vale nada, e que uma palavra mal dita poderia lhe custar um tiro na nuca, nesse exato momento”. - Ok, Omar. Boa sorte.
- Obrigado.

Saíram sem se cumprimentar ou despedir. Com o dinheiro no bolso e a adrenalina aumentando, sua mente agora passava a raciocinar exclusivamente sobre os detalhes que teriam de cumprir para que o trabalho fosse feito.

- Frances, vamos tomar um café?
- Claro.

Pediram dois cafés em uma lanchonete na Avenida Cesário Crosara.

- Faremos como sugeriu?
- Sim.
- Você está bem? Pergunto por conta da crise epiléptica.
- Fique tranquila. Não irá acontecer novamente. Fique tranquila.

Saíram caminhando pelo bairro e depois de vinte minutos avistaram uma Pajero preta com placa de São Paulo estacionada sobre uma calçada. Omar retirou do bolso uma chave, abriu as portas da Pajero e entraram.

- Liga o som pra gente.

Tocava jazz numa rádio local.

- Por mais que o mundo pire, veja bem Frances, a música sempre existirá sobre nossas cabeças, sobre nossas vidas. A música é intocável.
- Não sei. Acho que música tem sua época, essa aí não me agrada. Muito chata.

Dirigindo Omar riu e se distraiu com o solo de trompete do grupo de jazz. Gostaria de saber quem estava tocando. Torcia para que o apresentador dissesse. Detestava dúvidas. Seguiram-se então mais duas composições de jazz e ao entrar no ar, falando calmamente, o locutor disse ser aquele o programa “Jazz by Jazz” da Rádio Universitária, e anunciou o fim sem disse o nome das canções.

Omar pensou – “Meu Deus. Isso não foi um bom sinal. Merda!”

Logo em seguida um programa sobre a atual conjuntura política do país entrou no ar, com convidados debatedores.

Depois do assassinato da presidente Dilma, exercendo seu segundo mandato, o país se tornou uma terra gigante e sem lei. Com a intervenção da ONU e do governo norte-americano, os grupos de poder conservadores nacionais articularam a grande campanha pró-presidência de um jovem político religioso e negro, Irmão Isacke, que venceu as eleições em 2018.

O panorama político e social do país se encontra desde então como um barril de pólvora, mas não prestes a explodir e sim, com seu pavio sendo acesso diariamente e esse barril, como um Cristo ressuscitado ao terceiro dia, ressurgindo sanguinário e explosivo a cada manhã.

Rumaram para o bairro Cidade Jardim. Estacionaram o carro num descampado ermo e montaram, juntos, o rifle de alta precisão Barret M107, que estava embaixo do banco traseiro da Pajero.

Com a mira telescópica focada no saguão da casa onde o alvo se encontrava, aguardaram em silêncio por cerca de trinta minutos. Então um grupo de pessoas saiu de dentro da casa, conversaram um pouco no saguão e se despediram. Um homem e uma mulher permaneceram parados.

O tiro atingiu a cabeça do homem que caiu violentamente. A mulher se desesperou como uma Jacqueline Onassis redesenhada. Omar deu o rifle a Frances, que começou a desmontá-lo e deu partida no carro.

A cabeça de Omar doía, teve medo de que uma crise de epilepsia o acometesse. Entrou rapidamente numa estrada vicinal na rodovia que levava à cidade de Prata e dirigiu por uns 50 km, encostando o carro na porta de um casebre. Dois homens o esperavam.

Havia um monomotor estacionado dentro de uma plantação de café.

No ar, ao lado de Frances, sobrevoando o barril negro de enxofre e pólvora que havia posto fogo, Uberlândia, agora com seu futuro candidato a prefeito assassinado, Omar pensou em uma maneira de descobrir que linda canção era aquela que ouvira no rádio.

E decidiu voltar àquela cidade apenas quando seu corpo necessitasse de uma cova e do merecido desconhecimento que somente os mortos desfrutam.

*Don King é um norte-americano que foi produtor musical do grupo Jackson 5 e empresário do ex-pugilista Mike Tyson

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O cego e a biblioteca


hoje à tarde, no momento em que a ventania castigava com sua força os transeuntes no centro da cidade, anunciando a presença de sua irmã mais trágica; a chuva, que aplacaria momentaneamente o calor de setembro, um cego desceu de um ônibus nos fundos da biblioteca municipal. 

o vento forte o atordoou e ele tentou segurar o boné com as mãos. não achava o caminho e se dirigiu pra cima de um canteiro. então voltei e o ajudei a chegar na biblioteca.
depois pensei, "eu meio que supus que ele ia pra biblioteca. mas ele poderia ter ido pra qualquer direção".

tinha uma mochila de uma alça só, transpassada nos ombros. seus óculos escuros eram legais.

quer ajuda? 
sim. vou pra biblioteca.
sim, ponha a mão no meu ombro. _ e me coloquei ao seu lado.

caminhamos.
ele se chamava bruno e estava indo ter aulas de braile com dona noêmia, que me pareceu ser uma boa pessoa no conceito de bruno.

me perguntou se eu era daqui como se soubesse que não sou.

não. não sou mas moro tem um tempo.

nos despedimos; "fique com Deus!", "um abraço".

uma moça negra que passava sorria pra mim.
disse; "parabéns".
eu agradeci; "obrigado". 

olhei pro céu, muito escuro, de um azul profundo.
continuei a caminhar.

ventava muito.


#

domingo, 8 de setembro de 2013

O amor é uma febre



que maravilhoso isso!
maravilhoso

verdade e dor

molas mestras do xadrez de lençóis, fronhas e edredons
equilíbrio no picadeiro de carne e caos de nossos corações

em acrobacias felinas; leve salto silencioso sobre a vida
pouso garras afiadas em tuas ancas

e com vontade, lhe comerei. 
pouco a pouco. de colherinha!
com o sabor de suas entranhas em minha boca
o suco da sua fruta, imolada à minha ceia me deleito e deito o copo 
sobre teu corpo arqueado
lhe arranco um naco das costas,; sua alma escorre pelos meus dedos

rente a seus cabelos
nosso gozo servido em uma travessa de prata

seus olhos como lagos imensos no interior do deserto do Saara
à despistar andarilhos nômades tuaregs
e criar oníricas miragens incandescentes

tua boca, dita ao mundo clap clap clap o maior dos poemas
teu sexo a me devorar, recita, silenciosamente, uma ode mortal
nosso balé particular e febril

e nesse já extinto instante
quase morrendo deste brutal enlace
sussurramos, perigosamente,  um o nome do outro


ressuscitados, 
voltamos à vida, nunca saciados
com mais fome
e ainda melhores do que antes

terça-feira, 28 de maio de 2013

Carta de Nelson Gonçalves à Elizeth Cardoso




Querida Elizeth

Você enche meu coração de alegria quando ouço sua linda voz nas ondas do rádio.

Aqui do meu barracão eu vejo as luzes da praia e da cidade, lá embaixo, e sonho um dia ir te ver no Teatro Nacional, cantando pra todo mundo, e eu ali, num cantinho, pensando feliz, que você canta é para mim.

Um dia terei essa coragem de ir lhe ver, sei que você não irá se importar e até poderá me dedicar uma música, se souber que lá estou. Mas sou tímido, não se esqueça, quero apenas o calor de tua música a me esquentar, como um bom café, nas noites frias aqui no alto do morro.

Disse a meus amigos de nosso romance, e que ‘Laços’ é uma música sobre nós dois.

Ainda penso que poderíamos nos encontrar nas tardes de domingo, para um sorvete ou uma volta de bonde, eu juntaria algum dinheiro, economizando nos cigarros e na quentinha da obra; é só disser a Dona Nita, que não ponha mais ovo frito, nem a parca salada, e então poderíamos até um dia, num domingo, talvez o primeiro do mês, ir ao cinema, claro, na matiné, pois sei dar valor a sua virtuosa mocidade e não quero ninguém dizendo sobre moça de família, a passear com rapazote, em noitinhas, vendo fitas de hollywood.

Digo-lhe ainda, minha querida, que ao relembrar os encontros nos bondinhos, recorro sempre à memória, para que nunca me esqueça de teu sorriso, sendo disfarçado, pelas branquíssimas luvas que lhe cobriam as delicadas mãos, deixando à vista somente teus olhos sob o chapéu de importada flanela, e eu, impactado de algo que ainda não sabia o que era, me deixava naufragar nas águas de seus olhos, como miragem de um marinheiro à deriva, sob o sol da tarde de nossa cidade litorânea, inerte e imóvel. Em certo tipo de transe, sentado ao seu lado no bondinho.

Mas somente de lembranças não posso mais viver.

Rezo a Nossa Senhora e a Cosme Damião que me permitam sentir ainda mais de perto, o ar perfumado à tua volta, e que minhas mãos de operário, no dia em que nos vermos, estejam menos tremulas ante sua presença, para que possa acariciar sua face tão delicada.

Uma última notícia minha querida, venci a gagueira ao cantar no botequim nossa canção Laços e me despeço, lhe nomeando Divina, pelas vestes que tão suavemente, em teu corpo caem.
És um ser celeste, não restam dúvidas.

Com carinho

Nelson



terça-feira, 23 de abril de 2013

São Jorge terça-feira 23 # parte V


um brinde aos nossos desejos !!!

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Interrogatório sobre crime violento ocorrido no Condomínio dos Girassóis



HOMEM 1 - Você não tem nada a ver com o acontecido né?

EU - Eu? Como assim? O que querem dizer?

HOMEM 1 - Olha só, nós lhe investigamos esses últimos dias. Te seguimos, te gravamos, até vimos você cagar e a cor da tua bosta, então relaxa. Sei mais de você, nesse momento, do que tua mãe ou teu pai.

EU - Cara, do que você tá falando? Por que me seguiram, me gravaram?

HOMEM 1 - É nosso trabalho, meu jovem. E vou te dizer mais. Esse fato, esse caso que aconteceu, nós estamos muito empenhados em resolver.

EU - Mas que caso? Do que vocês estão falando?

HOMEM 2 - Deixa eu falar com esse porra. Escuta aqui mermão, vou ser direto contigo. Se mentir pra mim, uma vez só, te cubro de porrada, aliás se não responder direito o que queremos saber, o que te perguntarmos, vou te passar no “metal”. Tá entendendo?

EU - Sim.

HOMEM 2 - Ok?

EU - Sim.

HOMEM 2 - Bom, então responde ao que o meu amigo aqui te perguntar, sem dar meia volta, certo? Papo reto.

EU - Tudo bem.

HOMEM 1 - Obrigado pela interferência. Bem, nos lhe investigamos nos últimos dias, e ao que parece você, que era para nós um dos principais suspeitos de ser um cúmplice, não tem nada a ver com o fato. Você é só um cara comum. Você lê muito. Mora sozinho, sai pela manhã pro teu trabalho, lê deitado pelado de janela aberta o mesmo livro há dias, come mal e fuma muito cigarro.

EU - Sim, de certa forma esse sou eu. Ando fumando muito.

HOMEM 1 - E você tem umas passagens né? Por porte de drogas.

EU - Tenho, foi numa blitz que aconteceu. A polícia parou nosso carro e tava todo mundo doidão, revistaram e encontraram maconha.

HOMEM 1 - Era bastante maconha, por sinal.

EU - A gente fumava muito.

HOMEM 1 - Entendo.

EU - Mas isso faz tempo. Eu sou um cara do bem, policiais. Não estou entendendo nada até agora. Vocês vieram me abordar por causa dessa maconha, de anos atrás? Por que?

HOMEM 1 - Nada disso meu amigo, estamos interessados em saber da sua participação no que ocorreu no condomínio da Praça do Retorno. Entendeu?

EU - Caralho, mas eu não tenho nada a ver com o que aconteceu lá. Não tenho nada a ver. Eu fiquei muito chocado com tudo, também. Muito chocado. Foi terrível.

HOMEM 1 – É, foi terrível. Sabemos disso. E por isso é que estamos aqui pra resolver essa porra. E te digo, alguma coisa ou alguém, teremos de entregar pra o delegado, logo.

EU - Opa, mas espera aí. Calma lá. Vocês querem me pôr nessa história, sendo que eu não tenho nada a ver com isso?

HOMEM 1 - Não sei. Você não tem nada a ver? Você é a “cara” mais vista nos vídeos de segurança do prédio, nas câmaras de monitoramento. E teu comportamento foi suspeito, muito suspeito.

EU – Tá, mas e daí?

HOMEM 1 - E daí? E daí você que me diz. Você sempre ia no mesmo horário na praça, sentava no mesmo banco em frente ao condomínio e ficava observando os carros e os moradores entrando e saindo. Seus horários e os detalhes mais pontuais, as trocas de turno dos porteiros, as empregadas que chegavam com as compras, as babás trazendo as crianças da escola. Sempre entre 5h30 e 7h. Todos os dias, durante várias semanas, você repetiu esse comportamento. Ou estou mentindo?

EU - Não, não está. Mas não posso ser acusado de ser cúmplice só por estar na hora errada no lugar errado.

HOMEM 1 - Isso é você que está dizendo, meu jovem, você que está dizendo. A suspeita é de que você vigiava o lugar e repassava as informações e os roteiros para o resto da quadrilha. O crime ocorreu exatamente no mesmo horário de fim de tarde, em que você visitava o local.

EU – Puta que pariu, não tô acreditando nisso que tá acontecendo!

HOMEM 1 - Não? Certo. E como explica que depois que a tragédia aconteceu você sumiu? Não voltou mais lá, não se sentou mais nenhum dia no seu banco de praça preferido. Não havia mais necessidade depois que o crime foi cometido, não é?

EU - Mas claro que não voltei! Eu não quis ir mais lá, porras. Eu fiquei chocado com tudo que aconteceu. Foi muito triste, trágico e violento.

HOMEM 1 - É mesmo? Ficou abalado foi? Certo.

EU - Foi.

...

HOMEM 1 - Você realmente não tem nada a ver com o que aconteceu?

EU - Não, não tenho. Não sou assassino e nem criminoso.

...

HOMEM 1 - Me diz uma coisa, meu jovem. O que você ia fazer lá então? Todos os dias, nos fins de tarde até o pôr do sol, no mesmo horário, sentado no mesmo banco da praça, o exato banco em frente ao condomínio?

...

EU – Policial, eu ia somente pensar em minha namorada e olhar os girassóis.

...

EU - Eu gosto dela e ela gosta de girassóis.