terça-feira, 23 de março de 2010
São Jorge Terça-feira 23 Parte II
São Jorge me apareceu num sonho na noite da terça feira 23 de Fevereiro há um mês atrás. Estávamos numa casa no alto de uma montanha, uma construção de madeira ladeada por pedras. Ao fundo se observava um despenhadeiro e se ouvia o barulho de uma cachoeira, que não se via...
Abaixo e ao lado direito, um lago de águas imóveis e azuis. Paz nesse lugar era inevitável. O refúgio perfeito para um guerreiro.
A casa por dentro era de um estilo indefinido, rústico e com vários tapetes e poltronas. Havia uma lareira e também, vejam vocês, um laptop, sobre uma escrivaninha de mogno.
Nas paredes enfeites de várias nacionalidades. Casacos de esquimó, um par de lanças, provavelmente africanas, cruzadas sobre a miniatura de uma fragata espanhola. Vasos de cerâmica indígenas, espadas árabes e adagas japonesas. Vários tabuleiros de xadrez, e ao fundo da sala, um enorme tapete dependurado entre duas pequenas tochas, com a imagem de um dragão verde cuspindo fogo. Belíssimo.
Nos cumprimentamos com aperto de mão.
_Como vai? - perguntou ele.
_Muito bem.
_Vejo. Está mudado.
_São os dias.
Sorrimos um pro outro.
_Em julho do ano passado... porque não nos encontramos? - perguntei.
_Você sabe por quê. Você não quis Robisson. Pouca fé não gera iluminação.
Abaixei a cabeça.
_Não se lamente. Agora sigamos em frente, é o que devemos fazer, sempre.
_Obrigado.
Nos sentamos em poltronas de veludo, e me ofereceu uma bebida que disse ser um conhaque feito pelos marroquinos. Ao beber, pensei ter a mesma consistência e sabor dos conhaques de butequim. E não pude deixar de rir por dentro, ao lembrar das circunstâncias de nosso primeiro encontro, girando em torno de bugigangas do Camelôdromo Central.
''Puta globalização mesmo!'' – pensei.
Tomamos nossos goles em silêncio, saboreando a bebida.
_E o carnaval? Você pula carnaval? - perguntei e São Jorge riu.
_Não diria que pulo carnaval, mas participo. Pra você posso dizer que minha escola é o Salgueiro. Vermelho e branco.
_Ah foi lindo o desfile do Salgueiro, mas eu torço pra Estação Primeira de Mangueira. Salve Dona Zica. Salve Cartola.
_A Mangueira já fez lindos carnavais. Já que lembrou o Cartola, porei um dos discos dele pra ouvirmos.
Abriu um armário sobre uma cômoda e retirou duma vez uns dez discos de vinil. Abriu outra porta e pra minha surpresa vejo surgir um aparelho de som Gradiente de metal prateado.
_ “Verde que te quero rosa”? – perguntou.
_O Cartola de 74 talvez. – retruquei.
Pôs um dos discos na vitrola. São Jorge cantou a plenos pulmões este lindo trecho.
“Acontece que o meu coração ficou frio
e o nosso ninho de amor está vazio.
Ah se eu ainda pudesse dizer que te amo...
Ah se eu pudesse, mas não quero, não devo fazê-lo.
Isso não acontece...”
Bati palmas e acendi um cigarro.
_Já se apaixonou Jorge?
_Sim. De formas diferentes e com várias intensidades. Já destruí reinos por amor e já permiti serenamente que mulheres simplesmente fossem embora por saber ser o melhor, pra nós dois.
_Me identifico.
São Jorge deu uma imensa gargalhada e me serviu mais um gole de conhaque.
_Você Robisson, é um “bon vivant” apaixonado, teu coração bate noutro ritmo.
_Somos dói, meu caro amigo. - sorri.
_Um brinde ao nosso encontro. - caímos na gargalhada.
Era fantástico perceber que toda aquela realidade, aquele encontro, aquele lugar, aquela bebida era tudo um sonho, e que ao mesmo tempo era tudo tão real. Eu sabia que estava dormindo, podia sentir com a ponta dos dedos, minha cama. Mas de olhos fechados não me permitia sair daquele sono.
Então me convidou a jogar uma partida de xadrez, num maravilhoso tabuleiro de pedra sabão, segundo ele presente de uma donzela do sul da Índia.
Eu, destreinado desse nobre esporte não fui páreo a inteligência divina do velho Jorge, e em muitos momentos da partida observei um sorriso irônico, querendo brotar no canto da boca do Santo, como que a zombar da minha inabilidade de enxadrista. Mas em um segundo seu semblante se anuviava, e retomava as feições serenas que guarda o rosto de alguém imortal.
Sobre nos pairava a voz de Cartola, outro imortal.
_Sabe, Robisson, meus dias foram e sempre serão de muitos compromissos e tarefas a cumprir.
_Você é um Santo, irmão. Isso é normal.
-Sim, justamente. Pois eu posso tudo, compreende? Meu ir e vir somente a mim pertence amigo. A clarividência que um santo possui é uma dádiva que elimina qualquer possibilidade de erro, de que o destino nos pregue uma peça, que o acaso te surpreenda...
Seu rosto começou a ficar sério e cansado.
_Enfim, que se tenha o sublime gosto da verdadeira vitória, que somente existe, porque existe a derrota, a queda. Não conheço a superação, pois pra mim só há desejo e realização, compreende?
-Claro. Você pode tudo.
Nesse momento ele se virou e pôs o copo na mesa e me olhou nos olhos.
_Não, eu não posso tudo.
_Como assim?
_Há uma coisa que eu não posso. Somente uma e é a que mais me pesa, Eu não posso errar.
Percebi a angústia de São Jorge ao me dizer isso.
_Robisson meu jovem, veja bem, há um momento em que o homem se torna Deus, quando vence uma doença, quando cria uma obra de arte, faz uma descoberta científica ou escapa de um acidente. Em suma, quando faz algo que poderia dar totalmente errado, mas faz o certo. Isso é um milagre. Quando tudo aponta para o erro e entre um em um milhão, o homem faz a opção certa.
-Entendo.
-Um santo é unânime, irrepreensível, correto, prático e sábio. Perfeito compreende?
-Sim, com certeza.
_Por isso lhe digo que meus dias vêm sendo desde séculos, até a eternidade, de modorrenta mesmice. Meu imenso poder me causa cansaço. Não há surpresas nem novidades em meus dias.
Seus olhos estavam brilhantes agora. O disco do Cartola havia terminado. Levantou e caminhou até a vitrola.
_Vamos ouvir outra coisa? Um rock, que sei que você gosta.
_Pode ser.
São Jorge me saca da vitrola um puta disco dos Pixies e põe pra tocar “Monkey Gone to Heaven”... há um trecho na música que diz:
"if man is 5
then the devil is 6
and if the devil is 6
then god is 7...”
Volta pra sua poltrona e sorridente, me serve mais conhaque marroquino. Acendo um cigarro. Ele se ajeita e continua a falar.
_Quero provar alguns dias de “humanidade”, provar do desconhecido. Quero me ajude, você que sabe como muitos... a viver. Quero estar sujeito às improbabilidades do impossível, ao piscar de olhos do destino. Quero dias regidos pelos astros do desconhecido. Quero o livre arbítrio. Você pode fazer isso? Pode me acompanhar por alguns dias em minha peregrinação pela a Terra? Me guiar e me auxiliar?
Puta que pariu! Eu acostumado a pedir a São Jorge sortilégios, agora me via sujeito da inversa condição. Convidado pelo Santo a promover um milagre em sua vida e levá-lo pela Terra a conhecer os prazeres e a insanidade humana.
_Meu caro Jorge... seria loucura lhe negar esse pedido. Estou a sua disposição.
_Sabia que ia gostar da idéia. Prepare sua mochila, lanterna, suprimentos e coragem. Partiremos a qualquer dia, de hoje em diante.
Perguntei-lhe aonde iríamos e ele me disse que a pergunta era irrelevante pois eu já sabia a resposta. Eu já sabia aonde iríamos? Como assim?
_Até logo Robisson.
_Até Jorge.
Acordei suado e não dormi mais, eram 3 horas da madrugada. Sentei no computador e fui escrever isso.
Agora é esperar. Eu estou pronto. Já sinto o cheiro da estrada no ar.
No mês de Março há outra terça-feira 23.
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3 comentários:
Salve!
muito bom poder obervar os comodos e paredes do teu hotel, e principalmente falando de algo que vem muito de ti: São Jorge! que ele te acompanhe e brinde contigo tuas vitórias e honrarias merecidas!
Parabéns grande Artista Guerreiro, tão Guerreiro e brilhante quanto o pai.
Saudade e Obrigada SEMPRE.
"podia sentir com a ponta dos dedos, minha cama." GOSTEI, em letras de fôrma.
p.s.: santo não existe.
postei um texto sobre São Jorge em meu blog. faça uma pesquisa e irá encontrar a veracidade das informações contidas na matéria.
link: http://paidajulianocdc.blogspot.com/2009/08/sao-jorge.html
Frank Black está equivocado, o correto é: "Man is six ... Devil is six six six ... God is seven and GOD IS ALL...”
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