quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Exame de sangue de Torquato Neto – protocolo 385838

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Ele fez uma transfusão de sangue anteontem.

Me contou.

No resultado do exame, disseram, havia “cacos de vidro, um metro de fio desencapado e poeira”. Encontraram “30% de descartável poesia, um litro de canções inacabadas, duas bitucas de cigarro e ainda um enorme nome indecifrável”. Sugeriram um “tratamento à base de fartas emoções, desencontros e humores alterados. Mudança de ares e alimentação a base de destilados”.

Sua internação foi imediata.

Uma junta médica logo foi chamada para avaliar o estado do corpo já em decomposição. A família foi indagada sobre a possibilidade da doação dos órgãos, afora o coração, já predestinado imprestável.

_ Doaremos, disseram, seus olhos e o lóbulo esquerdo do cérebro, onde guarda suas fantasias e inspirações.

Os médicos diagnosticaram, temperamento obsessivo e períodos de solidão. Indisposição crônica pra vida e grandes quantidades de vontade de viver, convivendo juntas. O nível de glicose e de THC era muito alto.

O hospital das clínicas solicita a demais poetas, amigos e aventureiros que socorram o paciente. Seu estado é gravíssimo.

Tragam sangue novo a este moribundo.

Esperando pelo pior, uma coroa de flores foi deixada no corredor do ambulatório, seu caixão minuciosamente espaçoso foi encomendado com as devidas considerações à cerca do tamanho do seu coração. Imensidão não é algo planejado pelos donos das funerárias e seus marceneiros.

Fez-se uma fila de antigos desconhecidos para vê-lo prostrado na maca, ligado por anfetaminas, tubos e flores nos cabelos. Uns traziam simples folhas de papel em branco, esperando receber um último verso, ou em delírio, uma procuração do enfermo lhes passando seus bens. A namorada, duas sobrinhas e suas pecaminosas memórias.
As enfermeiras se constrangiam ao lhe negarem cigarros, mas lhe afagavam os cabelos, e se entreolhando de soslaio, vez ou outra lhe ofertavam beijos na face rubra.

Jornalistas e biógrafos tentaram entrevistas, todas negadas.
Na TV, especiais e homenagens foram editados para celebrar o acontecimento fúnebre, relembrando ao grande público momentos importantes da sua vida, como quando fez cinco mil barquinhos de papel com seus poemas e os jogou no Tietê. Ou quando incendiou uma tonelada de dicionários por conta da nova lei ortográfica da língua portuguesa. Ou quando promoveu sua grande vernissage em banheiros públicos na oportunidade do lançamento de seu último livro, afirmando serem os mictórios os grandes confessionários da humanidade. O homem na merda. Todo um Globo Repórter foi realizado em sua homenagem, e no Rio de Janeiro duas Escolas de Samba disputam os direitos de cantarem em samba enredo as peripécias do poeta.

Clinicamente, seu quadro foi se agravando, os órgãos inchados e paralisados anunciavam o que todos previam. A comoção nacional aumentava. Praças em pequenos vilarejos sendo batizadas com seu nome. Feriados sendo instituídos nas cidades onde morou. Crianças ganhando seu nome por cartórios em todo o país. Livros didáticos e apostilas começam a ventilar seus poemas nas escolas. Amigos, ex-amantes e até mesmo filhos, começam a surgir, dando suas versões na imprensa sobre sua vida e cobrando seu legado. Uma instituição para artistas desamparados é fundada levando seu nome. No último Fla x Flu um minuto de silêncio é feito em sua homenagem.

Os dias se passam e a calamidade da sua situação piora. Sua morte já é anunciada.

Num dia, bem pela manhã, o poeta acorda, os olhos remelentos, e se lembra que não desligou o gás. Então arranca os tubos, se levanta levando nos cabelos flores, chuta a coroa fúnebre postada no corredor e beija na boca a mais bonita das enfermeiras. Acende um cigarro na falta dum bom baseado e corre, com a bunda de fora, pra pegar o ônibus 132.

O medico diz em entrevista:
_ Para os poetas, parece que as coisas são simples e outras bem complicadas.

Em seu apart-exílio, liga o gás, enfia a cabeça no forno e acende um último cigarro.

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3 comentários:

depósito de sonhos disse...

meu peito voltou a bater e preciso de um baseado urgente, porque, quando choro, me vem uma vontade imensa de respirar fumaça.

depósito de sonhos disse...

foda, foda.
Vou fumar um bom baseado e pegar um ar.

BeTa DaYrElL disse...

Texto foda cara.